Não, o poeta não seria o pintor sem pincel. Assim também o pintor não poderia ser revelado como sendo o poeta sem a palavra. Tudo isso não passa de jogo de palavras, de tentativas falhas de definir as posições assumidas pelo artista. Porque o universo não é somente paisagem, realidade visível. Quantas dimensões existem?
Nenhuma Correnteza Inaugura Minha Sede é poesia de paisagem, nunca pintura de paisagem. Floriano Martins não pinta, não porque lhe falte pincel, mas porque olha o mundo, olha o olhar, olha para fora, para dentro e para aquele espaço que nenhuma máquina conseguiria ver. Revela sua própria loucura, aquela que põe diante do mesmo telescópio a criança, o primitivo e o mágico. A loucura de olhar e ver um gato mastigando, irônico, a minguante face da Lua. Em “Fuga” o corolário de toda a sua poesia: “Toda paisagem é fuga / delírio da razão”.
Não importa a paisagem em si, nem há ufania de ter olhos. Então não basta o pincel, porque arte não é cópia. Além do firmamento está o passado. Olhos grudados no céu, o poeta prediz: “descerão estrelas / pedras azuis / de infância”. E mergulha nos olhos extasiados diante da “paisagem de bois ruminando a tarde”, num tempo longínquo em que havia um alpendre e uma rede balançando-se.
Na verdade, “a imagem fecunda o pensamento”. É a dialética da natureza: a imagem se transfigura por si mesma e pelo olhar. O poeta olha, e seus “olhos olham simples/ as imagens da imagem”. É o milagre da transfiguração. Cristo no monte Tabor.
Por outro milagre da natureza, o olho grava a paisagem. Amanhã, em vez do barquinho navegando em alto mar, surgirá um coração navegante. É a metáfora. Como também nessa imagem cristalina: “Nesse instante a poesia é um/ bando de andorinhas cegas/ varando o ventre da solidão”.
A imagem é, assim, também pretexto para discursos metafóricos, justaposição de imagens objetivas e subjetivas, como nos versos: “A dor é um pássaro sem asas/ O caos um naufrágio de peixes/ E o tédio uma valsa lilás”.
Em Nenhuma Correnteza Inaugura Minha Sede a paisagem, às vezes, é cena, e a poesia se faz de prostitutas de cais, mulheres cansadas do oficio de gemer debaixo de marinheiros bêbados que “celebram a cachaça/ como houvessem ganho/ a guerra/ e não/ não mais precisassem partir”. Outras vezes são quadros pendurados à parede, ou telas de pintores famosos, evidência da vocação paisagística de Floriano Martins.
Às vezes, a paisagem é como uma tela viva, sub-paisagem: sicrana na janela, que olha o mundo (outra paisagem), enquanto o menino a bolina, ou a menina “ai tão nova”, cujo pensamento “é uma lua bem cedinho/ na janela percorrendo/ constelações de quimeras”.
O poeta vai ao cais olhar o porto, o farol, a maré, a calmaria, o navio, o marujo, o pescador, a areia, o faroleiro, a prostituta, o Atlântico, o Mucuripe da velha Fortaleza de Nossa Senhora de Assunção. Vai espreitar a paisagem, “sonhar feito besta/ que a vida era a dor que ele iludia”, e ser poeta todo dia.
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