Nós presenciamos sua mansa e serena morte, causa desta nossa imensurável tristeza. E mais melancólicos nos fizemos quando cavamos a sepultura e nela o depositamos. Ele está aqui, bem debaixo desta cruz de madeira, morto. Por acaso necessitamos da mentira para falar e continuar a viver? Por acaso não temos olhos de ver e ouvidos de ouvir? Evidentemente as entranhas da mãe-terra o engoliram, tementes de outras tantas vilanias. Pois atendemos ao seu pedido: “enterrem meu cadáver no mais profundo do chão, de forma a tornar impossível a exumação, quer para violentarem-no, quer para mumificarem-no, pois morro para não mais conviver com os meus inimigos.” Reunimo-nos todos, chorosos ainda, e, com ferramentas e forças, cavamos o mais fundo dos fossos e nele depusemos seu corpo.
E aí ele está – morto, debaixo deste chão pisado pelo ódio de vossos tacões infames e maculado pela fúria de vossas picaretas, ó recavadores de buracos, caçadores de ossos. Porém aqui permaneceremos nós, dispostos a impedir escavações indevidas e violações de sepulcros. Se necessário, combateremos sobre este monte santo e ao redor desta cruz de madeira, armados de nenhuma arma embora, contra vossas profanas armas e vossas pesadas botas. E vós ficareis hipnotizados por nossas palavras. Pois diremos ter ele vivido dias e noites entre nós e nestes dias houve muito sol e nestas noites muito sono. Ensinou-nos ele escorrer do alto de nossas cabeças e do detrás de nossas nucas e do defronte de nossos olhos muita luz para iluminar e aquecer o mundo; bem dentro de nós habita a sabedoria, guardada em arca-da-aliança, razão só nossa – e nunca, por isso, a ensinaremos a vós, nem a ninguém, enquanto reinardes, ó escavadores de túmulos e inquisidores de sábios. De mais a mais, prometeu-nos ele o futuro, cujo princípio se dará com a vossa morte. E se já ousardes acometer-nos, prevenimos: a cada investida vossa corresponderá um grito nosso; a cada grito nosso, uma dor vossa, a começar nos tímpanos e se espraiar por todas vossas cabeças, as quais estourarão apodrecidas. E nunca terminareis vossa obra destruidora, e morrereis raquíticos e perdidos em meio ao pó que se alevantará, ora por obra de vossas brutidões, ora de nossos gritos. E nós, após a vossa certa morte, desobrigados de guardar este túmulo, penetraremos as grutas e reencontraremos nas entranhas da terra a verdade que se escondeu debaixo de nossos pés desde o maldito primeiro dia do controle da superfície assumido por vós. E voltaremos aos espaços ora habitados pelas serpentes e pelos dragões. E faremos da loucura a regra única e inviolável da natureza, ab-rogadas já as vossas obras, ó ineptos inventores de leis. Mergulharemos como os peixes, voaremos como as aves, arrastar-nos-emos como os répteis, andaremos como as pernaltas. Redescobriremos as estrelas, as visíveis e as invisíveis, onde habitam nossos ex-irmãos, e lá reconstruiremos nossas civilizações destruídas pelo egoísmo. Tudo isto faremos tão logo ocorra a nossa ou a vossa morte, posto que, mortos, reviveremos e, mortos vós, faremos da vida presente apenas o livro das fantasias. Como, todavia, não temos poderes sobre as vossas armas, apenas dizemos ser vedado a vós to-car em nossos corpos e neste chão debaixo do qual ele sumiu. Do contrário, faremos tão grande alvoroço que vós sereis tragados pelas voragens da terra, para serdes devorados pelos dragões da vossa abominação. E se, apesar de nossos gritos, conseguirdes matar-nos primeiro, por não alcançarmos fugir a tempo aos golpes de vossas picaretas e ao peso de vossas botas, ou por terdes sequazes nos quatro cantos da terra, ainda assim nos encontraremos com ele e, de onde estivermos, quer como luz, quer como energia, quer como gás, quer como odor, quer como voz, enviaremos nossos recados, através de outros ouvidos, outros olhos, outros narizes, outros corpos, dos quais faremos nossos semelhantes por todo o sempre, até não restar na terra e no espaço sequer um tacão ou uma picareta sujos de sangue. Pois a verdade a nós ensinada está no sangue, no suor, nas veias, nos ossos e nas carnes também por vós carregadas, porém com esse tédio e esse egoísmo vossos, néscios que sois. E quanto mais nos enterrardes na terra maior comoção ela sofrerá, a ponto de acreditardes tratarem-se de sismos e deles vos assustardes e, por momentos, temerdes o nosso poder, mortalmente angustiados. E, quando tiverdes massacrado a todos nós e só vós viverdes sobre a calcinada terra, esta de mais nada servirá, nem sequer de despensa para tacões e picaretas, pois nela não nascerão mais frutos, os rios secarão e os animais, famintos e sedentos, se lançarão aos mares sem fundo e aos abismos insondáveis. E vós, pobres donos do mundo, não mais tereis condições de viver e morrereis como bonecos, faltos de um sopro ou de qualquer outro alento. Então, livres, viveremos debaixo da terra, nos mares e labirintos, com os chamados monstros, e visitaremos a crosta como vitoriosos, quando faremos chegar até nós, ou nós até elas, as estrelas que nos iluminam e iluminamos, e reiniciaremos por outra vez uma nova era, nós, figuras deste universo tão desconhecido e temido de vós – nós, partes integrantes disto que tanto abominais.
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