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terça-feira, 17 de janeiro de 2006

A poesia de Sérgio Campos (Nilto Maciel)


(Sérgio Campos)


Estreou Sérgio Campos com A Casa dos Elementos, em 1984. É um livro de odes e outras formas poemáticas. Há uma ode ao Mar, com epígrafe de Pablo Neruda. Que poderia ser de Píndaro, pois Sérgio Campos demonstra ser lido do oriente ao ocidente, do clássico ao contemporâneo. A segunda ode é à Terra, com epígrafe de Ernesto Cardenal. Poema ao mesmo tempo lírico e político: “Terra, / os homens lotearam / teu chão: / a poucos, sim; / a muitos, não”.

Na ode ao fogo homenageia Ferreira Gullar e todos os fogos: o primitivo, o dantesco, o bíblico, o fátuo.
Na ode à Terra, Jorge Guillén dá o primeiro toque, e todo o poema é um contraponto dedicado a Bach. E aqui se vê, pela primeira vez, literalmente, a paixão de Sérgio pela música. E pelo vinho: o ar é “hálito de deuses embriagados”.

O espaço deste comentário despretensioso é pequeno para citarmos todos os poemas do livro. No entanto, é impossível deixarmos de mencionar o último deles: “Um soneto de Anael”, cujos primeiros versos são: “O pássaro é um pedaço de seu vôo”.

Não, este não é o último. Na contracapa há ainda “Remate”, espécie de poema-despedida ou poema-conclusão: “ao inventor o invento”. Como se parafraseasse Machado de Assis.

A segunda aparição do mago Sérgio Campos se deu em forma de livro-álbum, em parceria com o artista plástico Mário Wagner. É de 1985, intitula-se Bichos e é quase todo manual. Isto é, feito à mão e para ser manuseado. Um estojo de versos e pinturas.

O traço gráfico de Wagner é sutil, moderno, ambicioso. Os bichos retratados parecem borrões na tela do espaço. Como a pulga – um simples ponto negro na folha branca, ao lado de um desenho abstrato que bem pode ser a cabeça do poeta. (Aqui não vai qualquer lição de higiene).

Mas não estamos falando de Mário Wagner, merecedor de estudo de crítico de artes plásticas.
Os bichos poetizados por Sérgio vão da pulga ao cão. Dez bichos de nossa natureza massacrada por queimadas, caçadas e outras macacadas. Inclusive a galinha. Alimento diário do homem. Aliás, o poema a ela dedicado é um dos mais singelos do livro: “Uma galinha é sua própria fome”.

São dez poemas e pinturas compostos com o objetivo primeiro de “falar” de ecologia, sem gritos, bandeiras e histeria. Sim, pode-se fazer poesia social sem esquecer a poesia. Arte não se faz apenas a partir da inspiração. Mas também, e, sobretudo, com muita vontade. Fora talento e conhecimento de técnicas.

Ciclo Amatório é o terceiro momento do poeta Sérgio Campos. Ganhador de prêmio de âmbito nacional, apareceu em 1986. Aqui os poemas são de vários matizes. Há os dedicados a ex-amadas. Amores adolescentes, amores perdidos. Há os dedicados a seus ídolos, como Bach, Jessye Norman, Benjamim Moloise. A cidade de Juiz de Fora também recebe homenagem. A infância perdida é relembrada.

Há um pedido em “Navegação”: “Quero que me ajudes / a encontrar tempos e pessoas”.

Sérgio Campos consegue fazer poesia, valendo-se de todas as formas conhecidas e possíveis. Assim, compõe soneto, não o soneto clássico ou parnasiano. Sem rima, sem estrofes, mas ainda decassílabo. E usa o verso branco e livre com a mesma desenvoltura com que pratica o verso metrificado e rimado. Isto é, não se atém a fórmulas, sem esquecer a tradição, o exemplo clássico, o exemplo melhor, quer venha de poetas antigos, quer de modernos.

Montanhecer traz orelha de Paulo Rónai. Livro soberbo, desde a capa de Pedro Alves. São poemas mais encorpados, de versos mais longos, se levarmos em conta os das odes, mais regidos pelas normas da estrofe e da rima, embora na sua estrutura sintática não se perceba um só verso que imite clássicos, românticos, simbolistas, parnasianos e modernos. Talvez modernos, sem qualquer servilismo a estes ou aqueles corifeus.

Vejamos os primeiros versos de “Movimentos de um poema”: “É sempre o mesmo poema/ o que muda são as mãos:/ sabem o ninho dos gestos/ estendem panos de outono/ sonhando com portulanos/ riscados no mar de anil”.

Há, sim, um pouco de todos os grandes e bons poetas. E isto é louvável.

Destaque-se, no livro, a série de sonetos dedicados à música: Brahms, Debussy, Ravel e outros. E a dedicada ao vinho, com epígrafe latina de Vergílio.

O livro, porém, traz o título da quarta parte e “é uma denúncia contra a desfiguração paulatina e sistemática de nossas montanhas” como explica Sérgio. Explica e faz poesia. Como no poema “Solidão”: “Aqui na montanha/ a solidão cumpre/ o tempo a cumprir/ Dá milho a seus pombos/ pousados num livro/ de Jorge de Lima”.

Para Sérgio Campos tudo é possível fazer em poesia – até denúncia social. Depende de quem o faz. Se for qualquer um, a coisa vira panfleto. Se for um poeta, o verso é poesia. Como em Sérgio Campos.

O livro Nativa idade (parte de uma trilogia) é constituído de pequenos poemas sobre bichos e frutas. Poemas sintéticos, definições de alguns bichos e frutas. Uns e outros como que se humanizam, falam, dizem de si mesmos.

Na apresentação, o poeta informa: o livro “foi projetado e escrito como experiência intertextual, uma introdução ao poético, através de uma lógica original associada ao mágico”. E adiante, com mais clareza, acrescenta: “não sendo um livro dito infantil, pressupõe uma certa cumplicidade entre quem escreve e quem lê”. Para facilitar o acesso aos textos, o poeta chama o livro de “abstrações para crianças”.

Na verdade, é um livro bonito, de capa colorida e, com certeza, agradável para crianças, jovens e adultos.

Outro livro da trilogia é O Lobo e o Pastor. Como prólogo, Sérgio apresenta um poema-síntese, um metapoema em que o poeta se vê como pastor/domador/caçador e vê, nas palavras, lobos, seres da natureza.

Sérgio Campos demonstra conhecer profundamente outras artes, além da poética, como a pintura e a música. Chega a dar uma “aula de pintura”, num dos mais belos poemas do livro. E homenageia, aqui e ali, compositores e músicos, como em “O tigre e o cristal”. Aliás, está neste soneto o título do livro.

O poeta é um emérito criador de sonetos. Isto não significa nenhum retrocesso, como poderiam pensar alguns cronistas mais apressados. Ora, as formas fixas, como o soneto, têm sido utilizadas, ao longo do tempo (e o serão até não se sabe quando), por todos os grandes poetas. Torna-se até uma futilidade a simples discussão de se isto é bom ou ruim para a poesia.

Uma das rimas preferidas de Sérgio é a das palavras terminadas em ais, quer as plurais daquelas terminadas em al (pardal, plural, igual, natural, surreal, musical, carnal, original, banal, gestual, terminal, germinal, madrigal), quer as palavras que em sua forma única já terminam em ais, como "mais”. Ele as utiliza mesmo quando não faz uso da rima. Como nas “Elegias brancas”.

No entanto, não se apega desesperadamente à rima, como os poetas presos às regras. Nem sempre necessita dela para compor belos poemas. Como em “Pastoral”.

De feição totalmente diversa de O Lobo e o Pastor é As Iras do Dia. Há nele, entretanto, um prólogo-poema, como no outro. A diversidade está nos temas e na forma dos poemas. Assim, não há sonetos, nem rimas, nem versos metrificados. E o tema central (da primeira parte) é a mitologia grega ou, mais especificamente, o mito de Odisseu/Penélope: “a legenda da perda é o eterno retorno”.

Na segunda parte há poemas de homenagem a Lúcio Cardoso, Drummond, Dantas Mota, o pintor Casás, John Perse, Beckett e Barthes. O livro é um todo de beleza. Há, contudo, poemas superlativos, como “Face na treva”.

Estamos diante de um poeta pleno de originalidade, conhecedor do instrumento verbal e afeito à crise de si mesmo e do Homem.

Sérgio Campos não é mais um poeta, porém um grande poeta a mais. Para o bem de nós homens. E, além de conhecer todas as palavras, todas as regras, tudo o que há de melhor na literatura, conhece, como só os bons poetas conhecem, a si mesmo e a nós outros. E entre este “nós” estão as pedras, os bichos, as árvores, a natureza, enfim.
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