(Nirton Venâncio)
Alheio à palavra de ordem de que a poesia deve ser um grito de denúncia, Nirton Venâncio publicou seu primeiro livro, Roteiro dos Pássaros, em que sussurra versos e fala de suas angústias. Como se o mundo começasse e findasse em si mesmo, ou como se tudo ao seu redor fosse demasiadamente horrível. Não consegue ver nada além de seus limites. O espaço físico é seu corpo ou o espaço que percorre ou habita.
Rosemberg Cariri, com Semeadouro, se diz poeta social. Seus poemas-denúncia não têm vigor, a partir da linguagem, cheia de lugares-comuns, coloquialismos, de uma pobreza vocabular comprometedora. Contudo, há outro tipo de poemas no livro, nos quais nada afirma, apenas constata.
Adriano Spínola atinge o teto de uma poesia cada vez mais próxima do chão, do homem e seus problemas sociais, a demonstrar que não existe esta ou aquela poesia, mas simplesmente poesia. Seu Fala Favela, um auto à maneira de Morte e Vida Severina, foge ao panfletário, sem deixar de ser denúncia. Trata-se de um grande poema, rico de imagens, construção verbal, fundado na melhor tradição da arte poética.
Ao buscar um modelo medieval para a construção de seu poema, Adriano não revela simples apego ao passado ou a formas ultrapassadas. Antes, mostra talento para fugir ao eterno modernismo de 1922 e inventar um poema como há muito não aparecia na literatura brasileira.
Sem querer desmerecer as obras de Nirton e Rosemberg (uma calcada quase toda em Drummond, outra alicerçada no mais trivial), não hesito em afirmar que Adriano Spínola saltou à frente de muitos dos mais conhecidos poetas brasileiros. Porque é preciso também inventar, reinventar, buscar novas formas, sacudir o mofo instalado nos olhos da maioria dos escritores de poemas, trocar as palavras, rejuvenescer a linguagem, tocar o chão, sem comprometimentos com os teóricos dessa ou daquela mania. Porque, do contrário, todos os poetas continuarão parecidos uns com outros. E, pior, os poetas de hoje parecidos com os de outras eras.
Apesar de tudo, Roteiro dos Pássaros traz muita beleza e é de se esperar de Nirton Venâncio um desenvolvimento em sua capacidade de inventar, trabalhar as palavras, os temas, de construir grandes poemas, porque não lhe falta o principal – a poesia. O mesmo se pode dizer de Rosemberg, por sua sensibilidade e capacidade de aprender a poesia da vida. Basta-lhe compreender que poesia não é grito e conseguir fundir o seu lirismo ao seu gosto pelo social, como o fez em muitos poemas.
Da experiência dos três poetas deve ficar uma lição – arte é pura invenção. Se não o fosse, cada radinho de pilha seria uma obra de arte. Ora, o poema nunca se confundirá com um objeto de entretenimento, curiosidade ou consumo. Nessa confusão muitos se perdem. E morrerão, como morrerão seus escritos, feito latas de conserva – no lixo dos apressados.
Rimas Presas, de Cláudio Martins, é um livro de sonetos. Sim, de sonetos. A forma poética celebrizada por Petrarca e Camões. O clássico e eterno soneto, que vem atravessando os séculos, conhecendo todas as escolas, se aninhando nas obras dos poetas de todos os tempos e todas as línguas.
Certamente não estamos vivendo o redescobrimento de formas literárias obsoletas, como poderão conjecturar leitores mais apressados. O soneto, como é sabido, não deixou de ser cultivado nem mesmo pelos revolucionários de 1922.
Não fiquemos, no entanto, nas arestas da forma. Busquemos a temática explorada pelo sonetista. Nos três primeiros sonetos, Cláudio Martins, como numa introdução, volta-se para o próprio fazer poético. No quarto soneto convida os leitores a ouvirem-no falar de amor. E por todo o livro verseja sobre o amor sexual e o amor altruísta, fundado essencialmente nos princípios cristãos. Para ele, o Amor é Deus.
Junto aos sonetos dedicados ao Amor, Cláudio Martins destila os conceitos mais variados da moral cristã e tece loas às virtudes ensinadas por Cristo. Como no soneto nº 16: “Pagando amor com amor, devo uma prece / a quem, não sendo amado, desconhece / as alegrias que este amor me deu”.
Por todo o livro as virtudes cristãs se esparramam em versos e rimas. Aqui a humildade, ali a gratidão, mais adiante a tolerância, noutro poema a prudência. Entretanto, emergem desse oceano de fé e otimismo umas pontas de desesperança, tédio, desespero. De qualquer forma, o livro é todo um relicário próprio para a leitura do homem comum, tão cansado, tão desesperado, tão à beira do abismo. Como os salmos cristãos, Edmundo de Amicis, Saint-Exupery. Ideal para ser lido à noite, em família, ao som dos “Noturnos” de Chopin.
Di Versos em Versos, de Lauro Maciel Jr. e Floriano Martins. O primeiro assina a parte do livro intitulada “O gume dos desejos”. O poeta não embarcou na canoa furada do panfletarismo, do jogo de palavras e da pobreza vocabular da chamada “geração mimeógrafo”. Pelo contrário, elaborou sua poesia a partir de uma eloqüência política sem chavões. Criou não a partir de manchetes de jornais, do noticiário castrado dos meios de comunicação, mas de toda uma tradição cultural. Assim, torce o ufanismo verde-amarelo de Ozorio Duque Estrada e Olavo Bilac, e fala como um cronista-poeta verdadeiramente brasileiro, atento à questão da terra e da gente.
Aproveitando certas palavras-chave do ufanismo, quebra-lhes o significado. Serve-se da língua bárbara, não para esconder mazelas, mas “para sacanear a dor”. Não a sua dor individual, a angústia de intelectual de “bar don juan”, porém a dor maior, a da nação.
Outras vezes, Lauro Maciel revê as imagens criadas pelos ufanistas e cria outras imagens, em contraposição àqueles. Assim, em vez da “grandeza da pátria”, o desencanto: “não quero só superfície para arrastar nossos pés/ nem quero brasílias para aquietar nossa ira/ quero é meter a mão tesuda/ na garganta desta terra”. O poema “Coração Provinciano” é de uma beleza, de uma grandeza de arrepiar. É o próprio programa-poesia do Brasil. Gritando nas ruas, será capaz de fazer o povo delirar.
Pela utilização de certas imagens e palavras, é evidente que Lauro saltou por cima dos poetinhas da época da censura. Não se contentou com a simples grafia de palavrões: deu-lhes movimento, suporte político e poético. Assim, a pátria é o “cabaré de nossos corações”.
Floriano Martins assina a parte “Entre as palavras”, na qual se esmera na composição de alguns poemas. Num deles chega a diagnosticar os rumos de uma nova poesia: “o disparo provisório do ódio/ requer outros signos, outra fornalha”. E é o que vem fazendo: uma poesia isenta de palavras vãs, de repetições e de experiências fracassadas. Se se volta para uma reflexão crítica do poema, como em “O Poema – alguns tratados”, não quer dizer seja sua preocupação apenas esta. Na sua poesia estão o homem e sua angústia, seu medo, sua esperança, seu tempo.
Inscrito entre os poetas de vanguarda, “desde que por termo tão contraditório se denominou o escritor que experimenta e reinventa ou até mesmo neologiza a matéria-prima do verbo”, nas palavras do crítico Pedro Lira, o cearense Roberto Pontes publicou há alguns anos Lições de Espaço –. Teletipos, módulos e quânticas. O poema trata do espaço em relação ao homem e divide-se em três tempos ou livros. No primeiro, o espaço é aquele do poeta – o espaço nordestino, seco quase sempre, onde “o mormaço cose ossos contra os nervos”, dividido em latifúndios, onde o lavrador, “o safrador/ lavrando/ decifra o dano, conhece o demo e o dono” do latifúndio habitado por seres de um tempo medieval.
O segundo livro trata de um espaço científico, o estudado, o conhecido pelos cientistas, desde Euclides, passando por Einstein, um espaço intermediário no tempo – o Nordeste sendo o princípio, o alfa; e o cosmos desvendado pelas naves sendo o fim, o ômega. São definições e conceitos poéticos do universo, do espaço. Filosofias do espaço.
O último livro é como a História da conquista hodierna do espaço. São notícias, teletipos em ordem cronológica a partir do “cavalo Sputinik”. Em vez de numerados, como nos dois primeiros livros, os poemas deste são titulados, embora com o auxílio de números: módulo 1, teletipo 1957 etc.
Encerra o livro o poema “finito/infinito”, síntese da odisséia do homem no espaço, hino ao homem moderno: “sou um rei a cavalgar na luz”.
Talvez soe mal, sobretudo depois das experiências concretistas, apelidar certa poesia de discursiva. No entanto, nenhum porta-voz das vanguardas poéticas, ao chamar Fernando Pessoa de discursivo, o fará pejorativamente. Memórias de Botequim, de Airton Monte, é poesia discursiva.
Afora as várias referências ao criador de O Guardador de Rebanhos e o poema “Para Fernando Pessoa”, momentos há nos versos de Airton Monte que trazem a marca do mestre, como nestes: “Eu sempre estive só / mesmo na presença do mundo. / Não tenho necessidade de sentir medo. / Se existe o medo é porque existem / pessoas dispostas a sentir medo”.
Outros ídolos estão presentes na poesia amarga, dolorida, indagativa de Airton Monte. Um deles é Hemingway, ou o fantasma do Hemingway suicida. Outro é James Dean, o funesto de sua morte prematura. E ainda Marylin Monroe, como símbolo sexual de uma época. Os três irmanados pelo laço da morte trágica e misteriosa. Presentes como símbolos, personagens que marcaram a adolescência do poeta. Fernando Pessoa aporta não propriamente em sua vida, mas em sua obra, pois primeiro vieram os calendários estampando o corpo nu de Marylin e as fitas mostrando a juventude inquieta de James Dean.
O autor de O Grande Pânico está profundamente preso à sua cidade. Fortaleza está presente em quase todos os seus poemas, com suas ruas, praias, noites, prostitutas, seus bêbados e bares, sua condição de metrópole-arraial. Não há um “Lisbon Revisited”, mas uma “Evocação de Fortaleza”.
As influências do poeta português na obra de Airton Monte são por demais visíveis, embora Memórias de Botequim não sejam nenhum Ficções do Interlúdio. Na verdade, falta ao poeta cearense a paciência de burilador e o pudor necessário para esconder seus versos familiares. Porém, burilar não é metrificar. A métrica não deve prevalecer à própria poesia; a palavra não é apenas signo. Além disso, o bom álbum familiar não deve tributo ao poema incendiário de qualquer versejador.
Há muitas imagens a transbordar dos poemas. “Lembro que de madrugada/ meu pai saía pra caçar fantasmas”. É o menino crescido cutucando o fundo da memória em busca de explicações para seu tédio de adulto.
Algumas palavras pululam, aqui e ali, como signos indecifráveis. O espelho em que se mira, o rato preso entre as garras do gato, o telescópio, este já presente num de seus maravilhosos contos. Airton Monte vai catando os objetos-palavras e, garimpeiro de sangue quente, forjando sua joalheria poética. Algum cascalho, sim, mas também muito ouro acumulado no matulão. Não faz muito mal essa desídia. Apenas um peso desnecessário para a longa caminhada.
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