Moisés se enfeitou de bigodes e gestos para impressionar as multidões que o aguardavam ciosas feito fêmeas. Calçou as grandes botas de ferro e ordenou aos pajens se ajoelhassem para o polimento. Tirassem a ferrugem toda. Como para adorar as sombrias pernas do Chefe, curvaram-se todos apressadamente, fazendo estrondar o chão. Alguns ainda se lembravam do ritual. Outros, de tão velhos ou de tão jovens, amassaram as magras e caludas mãos no espelho do piso e fizeram sangrar as línguas ressequidas. Os muitos anos de sossego no Armário dos Calçados deixaram envelhecidas as botas. Quase irreconhecíveis. A memória dos antigos pajens, porém, acordou de súbito e as rejuvenescidas botinas caminharam pesadas debaixo do Chefe. O óxido se lhes havia acumulado feito lixo.
Primeiro as mãos se pintaram da cor de barro e cresceram, como se inchassem. Depois os lábios e as línguas se transformaram em caretas sujas. Por último as escovas e flanelas fizeram rodopiar pelo salão uma poeira de indefinida cor. Nas botas o brilho se fez logo, logo, como se de ouro fossem. E, quando a luz deitou-se sobre elas, os reflexos se espatifaram pelas salas do Palácio, como se anunciassem um Novo Dia. Os mais jovens se assustaram e caíram desfalecidos. Porém Moisés permaneceu impassível às reações da pajeada. Cabeça e pés enfeitados, vestiu a batina parda e de helicóptero se dirigiu à Praça das Proclamações.
Conduzido em liteira, por sessenta e quatro negros reluzentes, o Chefe subiu ao púlpito-palanque. A orquestra, a cem metros do chão, fez troar hinos alarmantes. Invisíveis objetos partiram na direção da Lua, a levar acordes misteriosos.
Coberto de galões, Moisés parecia um todo-poderoso Marechal.
Clamores subiram aos céus como vociferações infernais. Escureceu, e o pisca-pisca das lâmpadas incandescentes arrancou dos peitos e gargantas urros de histeria. E teve começo a pregação. Que a utopia jamais renascesse sobre a face da Terra, nem no interior das ca-vernas, grutas e labirintos, nem além das fronteiras de nossa visão. Esmagada para sempre, como serpente secular. Ele, o Arcanjo São Moisés, a tinha esmagado.
O povo se petrificou por um minuto. Moisés gesticulou mais, como se ensaiasse um concerto, mudo, e a multidão voltou a urrar. E a pedir mais vociferações contra os fantasmas. Mais, mais, mais. O chão molhou-se do suor do embrutecimento.
A prédica terminou abruptamente. Cataclismo a abalar os alicerces do mundo. Moisés desapareceu de vista, como se eclipsado. Simples encenação?
Porém nem mais tarde nem no outro dia nem nunca ninguém soube que mágica se deu naquele momento. Nenhum do povo, no entanto, ousou fazer ao seu vizinho, ao seu mais próximo, ao seu par, a pergunta criminosa, maldosa, ignominiosa. Nem em sonho. Talvez os jornais explicassem. E seria preciso ler e pensar. Quem sabe, a televisão! Bastava ver e ouvir.
As multidões se dispersaram, como de costume. Seguiram miúdas por entre as colunas de mármore da gigantesca cidade. Rijas, retilíneas, mudas. Longe, no espaço, pássaros de aço varavam as imensidões, conduzidos por pilotos perdidos, em busca do Além.
Nos museus, extintos animais pastavam o passado. O povo os saudava. Moisés assassinado? Um absurdo! Mas os absurdos não mais existiam. Morto de velhice? E por que não o disseram? Seu coração de plástico emurchecido? Lamentável.
A História nada revelou. Moisés, utopia de alguns pensadores. Personagem de farsa. E para que acreditar fossem renascer as utopias, se soterradas por séculos e ditas mortas para sempre? Ora, a ressurreição, essa outra utopia, também jazia impressa no Livro dos Mitos.
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