(Pharmacia Mattos, Baturité antiga)
Quase todas as minhas narrativas longas têm como cenário a fictícia cidade de Palma. E também alguns contos. Palma seria Baturité. Não sei se a omissão do nome real da cidade se deveu à vontade de me esconder, me sentir mais livre para criar ou de não parecer tão real, não ser um cronista. Para substituir Baturité, inventei primeiro Jeriquitiba. Depois Tamboaçu.
O topônimo Palma apareceu primeiro nos contos “A Beata de Palma”, “As Pontas da Estrela” e “Tony River”, do livro Babel, publicado em 1997, mas escrito logo após Itinerário, entre 1975 e 1976. Originalmente, no entanto, nas três peças eu ainda não denominava Palma a cidade de minha ficção. Assim, a segunda dessas narrativas intitulava-se “O Menino com uma Estrela na Testa” e se passava em Tamboaçu, tal como a primeira. Este nome perdurou talvez até 1982, quando passei a reescrever meus contos publicados em jornais e revistas.
Como disse, Jeriquitiba é o primeiro nome da cidade de minhas histórias. Apareceu apenas uma vez, em “História da Selvagem Batalha das Cruzes em Jeriquitiba e na Estrada que a Liga ao Resto do Mundo”, escrito em junho de 75, reformulado em julho de 85 e transformado em “Calvário”.
“A Beata de Palma” se inicia assim: “Quando o trem parou na estação, o sol acabava de se esconder”. Em outros contos e romances se verá a estação de trens, comum a diversas cidades do interior. Maria Efigênia é o nome da protagonista, que reaparece em “As Pontas da Estrela”. As beatas também estão presentes em histórias deste e de outros livros. Na verdade, tencionava escrever um romance. A beata seria uma das personagens.
A primeira descrição da cidade está também naquele conto: “Por pouco não me perdi naquele labirinto de ruelas, becos sem saída, florestas de árvores nas praças, coretos, igrejas, capelas. Sim, além da majestosa igreja matriz, outras dez se espalhavam pela cidade”.
As cercanias de Palma podem ser vistas em “Calvário” (a estrada, a poeira levantada pelo caminhão, a cruz fincada no chão) e “O Fim do Mundo de Sinhá” (o sitiozinho, a choupana velha, a roça), bem como a própria cidade (“A Noite das Garrafadas”).
A nomenclatura dos logradouros de Palma, no entanto, surgirá somente com a novela A Guerra da Donzela, escrita entre 1976 e 1977.
Em Tempos de Mula Preta, segundo livro de contos publicado, porém escrito logo após os de Babel, o nome Palma só aparece em “Impossível Contar a História de Palma”, de abril de 78. Entretanto, em outros contos há referências a nomes de logradouros e à sua arquitetura e geografia, como em “Ave-Marias” (“Pela 7 de Setembro, Isidoro cavalga o jipe a toda. Esporeia, chicoteia, upa, upa, bicho danado. À porta do Café Portuguez, uma rodinha ri, gesticula, cabriola em redor do Dr. Pinheiro”.(...) “Pela Dom Bosco, o jipe pula, relincha, peida, em tempo de voar”. (...) “A moça continua debruçada à janela, olhos voltados para o namorado que caminha no rumo da Matriz”. (...) “Montado no jipe, Isidoro escramuça pelos becos do Potiú. A poeira vermelha o persegue”.); em “As Sete Onças de Neo” (“Eu até me lembrei do sobradão do Dr. João Ramos, com suas cem janelas”.); em “Cavalos de Tróia” (“No telhado do Caffe Portuguez pombos arrulhavam. Um casal se beliscava sobre um dos jacarés. O alto-falante cantarolava uma valsa”.); e em “O Castigo de Deus”, escrito em fevereiro de 78, (“Sim, o fogo devoraria tudo, coisas e pessoas. A menos que fôssemos todos para o meio da rua, as praças. Ou para a igreja matriz. Lá o fogo não entraria. Na casa de Deus a salvação. Quando o mar invadisse a terra, no dilúvio do fim do mundo, quem quisesse se salvar, buscasse abrigo no interior da igreja. As águas não passariam dos degraus do patamar, enquanto o mundo estaria alagado”.)
Palma e seus personagens são relativamente antigos. Quando a ditadura Vargas chegava ao fim, no Ceará ainda mandava Francisco de Meneses Pimentel, no poder desde 1935. Em 1937 tornou-se interventor, sendo demitido em 28 de outubro de 1945. Em Baturité ainda dominava o Comendador Ananias Arruda, apesar de ter exercido o cargo de prefeito até maio de 1943, nomeado em 1935 e eleito no ano seguinte.
Meu pai, Luiz Maciel Filho, nasceu no distrito de Guaramiranga, termo de Pacoti, comarca de Baturité, em 7 de dezembro de 1908, sendo filho de Luiz Fernandes Maciel e Raimunda Nunes Maciel, e faleceu em 10 de janeiro de 1988, em Fortaleza. Minha mãe, Francisca Alves Maciel, filha de Luiz Alves Pereira e Francisca Alves Pereira, nasceu em 11 de abril de 1908 e faleceu em 14 de julho de 1995, em Fortaleza. Casaram-se na Matriz de Baturité em 18 de setembro de 1930.
Morávamos numa casa comprida e estreita da Avenida Dom Bosco. Papai comerciava. Exportava produtos da região. Vivia bem, tinha prestígio, viajava para Fortaleza, vestia-se como rico. Mamãe cuidava da casa e dos filhos: Alda, Amadeu, José, Lúcia, Izeida e Ailton. Todos os partos devem ter sido assistidos por parteira. No ano seguinte nasceu Edinardo. Dois ou três filhos morreram bebês.
A Avenida Dom Bosco, chamada vulgarmente “calçamento”, era revestida de pedras. O asfalto viria muito mais tarde. No meio, dividindo-a em duas, havia árvores, que depois foram criminosamente eliminadas.
O batismo da tal avenida deve datar de 1939 ou mais adiante. Pois é dessa época a edificação do Ginásio Domingos Sávio, dos Padres Salesianos, construído em amplo terreno à margem dela. Nele estudei nos anos de 1957 e 1959 a 1961.
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Desde muito cedo me apaixonei por futebol. Recortava fotos de times e jogadores estampadas em jornais e colava num velho livro mercantil. Do futebol avancei para outros assuntos: atrizes e atores do cinema, carros, aviões, cidades, arranha-céus, montanhas. Embora proibido de levar jornais para casa, todo dia visitava a mercearia de papai e tio Quincas. Passava horas e horas lendo e vendo os jornais. Um dia descobri os suplementos literários. Minha curiosidade se voltou para a literatura. Lia todos os suplementos. Contos, crônicas, poemas, artigos de Braga Montenegro, Fran Martins, Moreira Campos, Otacílio Colares, Otacílio de Azevedo, Eduardo Campos, Artur Eduardo Benevides, João Clímaco Bezerra, Milton Dias, João Jacques, Francisco Carvalho e tantos outros.
Adolescente, cioso de ser também rebelde, descuidei-me dos estudos. Porém lia tudo: as antologias, não somente aquelas de minha série escolar, jornais, revistas, almanaques. Lia poemas, contos, trechos de romances. Portugueses quase todos; alguns brasileiros. Nada dos modernistas ainda. Lia antes do dia da lição, com muita antecedência, por curiosidade e prazer. Enquanto ria da cara do professor de geografia, lia, com sisudez, trechos de Garret, Herculano, Camilo e outros. E compunha sonetos líricos. Mais tarde, li os livros de Amadeu, que se dizia poeta e escrevia e copiava, diariamente, sonetos de poetas brasileiros. Todos falavam de amores não correspondidos. Num caderno grande, desses para comércio, de anotações mercantis. Um desses poemas se iniciava assim: “Ser feliz! Ser feliz estava em mim, Senhora...” Muito mais tarde, encontrei-o em Juca Mulato, de Menotti Del Picchia.
Por influência dos irmãos Ailton e Amadeu, engendrei sonetos, durante algum tempo. Apesar de não amar ainda, eu também me pus a chorar de infelicidade amorosa. Preocupava-me, porém, apenas com a forma e a rima. Um desses sonetos, anos mais tarde, 1964, tive a ousadia de enviar a um jornal de Fortaleza. Publicou-se, talvez por obra de Otacílio de Azevedo, com algumas modificações: “Ser poeta é ter no peito a tormentosa/ Chaga funesta em ânsias retratada.../ É ver em tudo a forma mais formosa/ E num sonho incensar a coisa amada!”
Minha primeira leitura de livro parece ter sido Três Figuras: o Frade Poeta, o Padre Voador e o Frade Preceptor. Li-o durante um retiro no colégio dos salesianos, em setembro de 61. Convidado a conhecer a biblioteca do colégio e a retirar um livro para leitura, depois de alguns minutos de pesquisa, interessei-me pelas três figuras. Talvez por se tratar de um dos poucos livros mais ou menos profanos da pequena biblioteca.
Amadeu embarcou, em 1957, para o Planalto Central, onde se construía Brasília, e deixou alguns livros. Um deles, Pussanga, contos de Peregrino Júnior. Lido este, folheei um romance obsceno, A Mulher do Caixeiro-Viajante, de autor desconhecido, certo Alcides Vaz. Livro recomendado para maiores de 18 anos. Puro erotismo. Deste período é também a leitura de Os Sertões, de Euclides da Cunha, que me pareceu obscuro, sobretudo a primeira parte. Mesmo assim, não tive, em nenhum momento, vontade de desistir da leitura. A pequena biblioteca doméstica eu a devorei nos anos seguintes, até 1963.
Em 1962 li, pela primeira vez, um romance, um grande romance: Quo Vadis?, de Henryk Sienkiewicz. Contava 17 anos de idade e acabava de chegar a Fortaleza, pela segunda vez.
Já preparado para leituras mais agudas, logo me aproximei de A Besta Humana, de Émile Zola. Durante e logo após a leitura, senti profunda repugnância pela nossa espécie. Então éramos aquilo? Causou-me verdadeira comoção. Pois eu me tinha acostumado aos românticos e me defrontava com um naturalista. Por muitos dias, o céu me pareceu mais escuro, sombrio, baixo, como se fosse chover muito, desabar tempestades duradouras. As ruas, de uma tristeza inexplicável; nas casas escondiam-se assassinos em potencial; as pessoas tramavam, em silêncio, bestialidades inomináveis. Permaneci doente por longo período. No entanto, outros livros me dariam um pouco de alegria, como Agulha em Palheiro e Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco.
Lida a pequena biblioteca doméstica, onde encontrar outros livros? Nas livrarias nem pensar, porque não dispunha de dinheiro. Eu deixava de merendar ou assistir a filmes para comprar livros. E, sem nenhuma orientação, comprava quase sempre bons livros. Adquiri, então, o gosto pelo livro velho, usado.
Eu tinha sede de conhecimento, de leitura. Lia tudo o que via. Pedia livros por empréstimo. Mas não me bastavam. Restavam-me as calçadas das ruas Guilherme Rocha e Liberato Barroso, onde camelôs vendiam livros usados, velhos, antigos, cheios de traça e mofo, roídos de traças, sujos, páginas amarelecidas, rasgadas, anotadas. Alguns nem capas tinham mais. Havia livros de todos os gêneros, dos mais variados autores. Nenhum deles, porém, eu conhecia. Passava horas a folheá-los. Nada daqueles nomes das antologias escolares. Nada de Camões, Machado de Assis, Herculano, Alencar, Bilac e outros citados e analisados em sala de aula. Então quem seriam aqueles dos livros das calçadas? Seriam bons escritores? Valeria a pena ler aqueles livros tão antigos? Os nomes não me eram familiares, todos ingleses, franceses, alemães. Folheava um volume, lia um trecho, apanhava outro, espirrava, tanto era o pó acumulado em suas páginas ao longo dos anos. Depois de algum tempo, perguntava o preço de um volume grosso, capa vermelha, título curioso. E ia comprando e lendo romances góticos, novelas de cavalaria, contos fantásticos, misteriosos.
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Aos 18 anos de idade, me dediquei à política. A Revolução Cubana, a renúncia de Jânio Quadros, a resistência ao golpe militar em 1961 me levaram aos livros e periódicos socialistas. Eu, Ailton e Edinardo chegamos a nos fazer vendedores da do Partido Comunista. Líamos o jornal do Partido, assim como A Liga, de Chico Julião, e outras gazetas esquerdistas.
Nunca chegamos a nos entender. Tornei-me, aos poucos, um pró-chinês, depois da divulgação dos crimes cometidos por Stalim. Ailton se dizia socialista, mas contra o “comunismo” da China e da URSS. Um amigo, Joatan, se dizia democrata. Mais tarde, eu e Edinardo estivemos juntos no mesmo grupo trotskista.
Como todos os jovens de minha geração, fui “educado” para ser anticomunista. Inicialmente pelos padres e os católicos de Baturité. Só falavam no “perigo comunista”. O jornal A Verdade, fundado por Ananias Arruda em 1917 (vejam a data), de circulação semanal ou mensal, trazia sempre artigos de teor anticomunista. Vi filmes contra a Revolução Cubana, li a revista Readers Digest e uma porção de livros desse nível.
Tudo isso acabou em 1º de abril de 1964. Joatan até fugiu de Fortaleza. Deve ter se embrenhado na Serra de Baturité.
Em pleno regime ditatorial, só restava ler. E me voltei de novo para a literatura. Dediquei-me a escrever ou rabiscar poemas e contos. Entre outubro de 65 e setembro de 67, li dezenas livros: O Amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos; Jóias do Conto Ídiche; Quem Perde Ganha, de Graham Greene; A Tragédia de Zilda, de Menotti Del Picchia; A Volta ao Mundo em 80 Dias; A Brasileira de Prazins; Sete Palmos de Terra; Iracema; Ubirajara; O Gaúcho; Senhora. Cinco ou seis anos depois, reli Iracema. Passaram-se mais dez anos para reler os dois primeiros de Alencar nesta relação e pela primeira vez conhecer O Guarani e O Sertanejo. Li também O Moço Loiro; Eurico, o Presbítero; O Vinagre e a Sede, de Sinval Sá, meu professor de português; Clara dos Anjos; Memórias Póstumas de Brás Cubas; Memorial de Aires; Quincas Borba; As Relações Perigosas, de Choderlos de Laclos; A Mortalha de Alzira, de Aluísio Azevedo; Poemas, de Verlaine; Pensamentos, de Pascal; umas novelas do Marquês de Sade; Os Vegetarianos do Amor, de Pitigrilli; Contos Escolhidos, de Machado; Ascânio, de Alexandre Dumas; e outros. Lembro-me também de dois romances, em edições antigas, que mantive comigo durante muito tempo: A Última Encarnação de Vautrin, de Balzac, e A Fossa, de Alexandre Kuprin. Li também Cleo e Daniel, de Roberto Freire.
Em 1967, estudante do Colégio Municipal de Fortaleza, voltei à militância política. Apesar disso, não deixei de lado as leituras. Tomava uns tragos de cachaça, antes de entrar no colégio. Durante o dia, trabalhava numa pequena mercearia de um cunhado. Trabalhava pouco e lia muito. E tentava imitar os clássicos estrangei¬ros. Numa dessas imitações, um conto, havia um personagem copiado do Capote de Gogol.
Da biblioteca do colégio retirei, por empréstimo, grossos volumes de contos e romances, como a série “Maravilhas do conto moderno”: norte-americano, italiano, russo, brasileiro, fantástico, etc. Fascinou-me nesses livros a oportunidade de conhecer o melhor da literatura universal. Ora, em pouco tempo conheci Guimarães Rosa, D’Annunzio, Trilussa, Pitigrilli, Moravia, os russos, todos os pilares da ficção curta.
Muitos e muitos livros lidos naqueles anos eu não lembro nem sequer os títulos. Não sei precisar quantos. Recordo, no entanto, de ter vendido mais de quinhentos volumes, todos lidos, a um comprador de livros velhos, talvez um daqueles vendedores da Rua Guilherme Rocha.
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Não gostava dos ficcionistas brasileiros, especialmen¬te dos nordestinos. Nem de Machado e Alencar. Outros nunca consegui ler. Como Érico Veríssimo e Jorge Amado. De ambos devo ter lido um ou dois livros apenas.
Quando descobri Graciliano, li-o de uma vez. Mas já depois de 77. Estava em Brasília e queria “conhecer” o Nordeste. Nostalgia, talvez.
Antes disso, devo ter lido apenas trechos dessa literatura em antologias. Sentia ojeriza por tudo quanto cheirasse a sertão, mato, interior. José Américo, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego não passavam de contadores de histórias sertanejas. E eu queria escrever como Machado de Assis, uma prosa de ficção sem cheiro de mato, urbana, nacional, universal. Eu não conhecia a lição da aldeia e do universal ou não a compreendia. Queria personagens universais, atemporais, criaturas sem nenhuma semelhança comigo mesmo. Nada de românticos, naturalistas e realistas. Escrevi então contos alegóricos, filosóficos talvez, reunidos no volume Itinerário. Exemplo disso também é o conto publicado em O Saco nº 1 (abril de 1976): “Em que deu a sabedoria do homem que transformava estátuas em seres vivos”, depois reescrito em forma de auto versificado e intitulado “Juízo Final”. Os personagens chamavam-se Homthues e Estrangeiro. Essa fase logo chegou ao fim. Em vez de alegóricos Brucutus, Cônegos, Jeovás, Platões, Pompéias, inventei um João aleijado e ensandecido por anos de prisão, um José Cristiano suicida, e mesmo um Ele e uma Ela que se unem e separam. Em fevereiro de 1977 fiz publicar um conto de linhagem totalmente diversa daquela: “Detalhes interessantes da vida de Umzim”, história de retirantes nordestinos. Minha literatura “regionalista” não nasceu, porém, depois de 77. Pois “Umzim” saiu no Saco, em 76. Creio que Carlos Emílio tem alguma “culpa” nisso, apesar de muito mais novo. Ele só falava do Ceará, do Brasil, apesar de ler Joyce e outros “ingleses” no original. Falava muito de Guimarães Rosa, também. São desse período os personagens nordestinos do segundo e terceiro volumes de contos, embora em alguns deles a geografia e o tempo sejam imprecisos, como em “O Grande Jantar”, situado numa corte européia logo após a descoberta da América.
Enquanto lia, escrevia, ou tentava compor histórias, contos, rascunhos de romance. Em 69 guardava na gaveta dezenas dessas narrativas, escritas a partir de 65. Algumas delas foram reunidas em livro em 74. As demais eu as rasguei.
A primeira tentativa de escrever um romance se deu em 62. Pareceu-me, porém, realista em demasia, e eu já (ou sempre) buscava o avesso do realismo ou o fantástico, o alegórico, o picaresco.
Outras tentativas de romance surgiram, esboços vários. Eu queria o romance novo, partindo de Alencar: índios, sertanejos, rebeliões, matanças, Conselheiro, cangaço, até às cidades grandes, o cosmopolitismo, a selva urbana, a violência nas cidades, o caos.
Publicado o primeiro livro, conheci alguns escritores novos, como Renato Saldanha, Gerim Cavalcante, Carlos Emílio, Airton Monte, Gilmar de Carvalho, Paulo Veras, Yehudi Bezerra. E continuei a escrever contos e a enviá-los para jornais, a partir de 1976. Alguns deles reuni em Tempos de Mula Preta, outros em Punhalzinho Cravado de Ódio. Quase todos foram reescritos, depois de publicados em jornais e revistas. Alguns receberam outros títulos.
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Minha mudança para Brasília (saudade da terra natal, da família, dos amigos) talvez tenha servido para sedimentar em mim o ânimo de escrever uma literatura regional. São desse tempo os primeiros contos baturiteenses, cearenses, extraídos da memória: “Cavalos de Tróia”, “Romos”, “O castigo de Deus começou ao meio-dia” (depois apenas “O Castigo de Deus”) e “Impossível contar a história de Palma”, verdadeira confissão de incapacidade ou impossibilidade de escrever a história de minha terra.
Em carta de 24 de abril de 77, Carlos Emílio me dizia: “Precisamos, portanto, duma recapturação de nossa pré-história (é isso que eu estou fazendo), reinaugurar a cosmovisão do índio, dos seres desaparecidos e que viveram nessa terra muito antes de nós, os invasores, um retorno às fontes populares (cordel, autos, histórias narradas oralmente, os mitos da terra, da água, do ar e do fogo do povo” (...)
Essa fase baturiteense é também a fase das novelas ou romances, iniciada com A Guerra da Donzela. Na verdade, o primeiro projeto de um romance indianista surgiu em 1976 e contaria a guerra entre brancos e nativos no decorrer dos séculos XVII e XVIII, travada nos sertões nordestinos e especialmente no Ceará. O personagem principal seria um escritor que planeja escrever o romance dos índios de Baturité. Um romance dentro de outro. Esse romance teve várias versões, sofreu cortes, modificações profundas, e nunca vingou. Dele surgiu, de forma resumida, Os Guerreiros de Monte-Mor. O enredo é simples: Em meados do século XIX inicia-se mais um movimento nativista no Brasil. Semelhante à Inconfidência Mineira, à Conjuração Baiana, à Confederação do Equador. O palco dessa nova rebelião é a Serra de Baturité, no Ceará. Forma-se um exército revolucionário, composto de apenas três soldados: João da Silva Cardoso e seu neto José, ambos descendentes dos índios jenipapos, e um nativo da tribo xocó. Suas armas mais poderosas são morcegos das cavernas. A intenção do grupo é criar um novo país. Talvez um império. Ou uma república de índios. O romance é a história jocosa desses rebeldes. Seus planos, suas lutas, seus fracassos. Não se trata, porém, de um romance histórico. Melhor chamá-lo de romance picaresco. Porque seus personagens principais – o Regimento Cardoso – são bufões. Aventureiros imaginários de um período de muitas aventuras, farsas, bufonarias. O século XIX brasileiro, e cearense em particular, é cheio disso. Inicia-se com a chegada do naturalista Feijó às terras do Ceará. Sua missão: achar salitre para a fabricação da pólvora portuguesa.
A primeira aventura político-militar, no entanto, se dá em 1817, com a Revolução Nativista de Pernambuco, similar nordestina da Inconfidência Mineira. O movimento se estendeu por outras províncias do Norte. Na vila do Crato, mais tarde relegada a segundo plano com o aparecimento do Padre Cícero de Juazeiro, José Martiniano de Alencar (pai do romancista), Tristão Gonçalves e outros heróis e farsantes proclamam uma república, que dura uma semana e resulta no enforcamento dos primeiros republicanos do Brasil.
Em 1822 dá-se a grande farsa da aclamação de Pedro I. Dois anos depois, o imperador dissolve a Constituinte e faz irromperem novos focos de rebelião. No Ceará instaura-se a segunda república, que adere à Confederação do Equador, ou República do Equador, também de curta duração. Alguns aventureiros e farsantes ditos nativistas e republicanos esquecem as aventuras e voltam ao palco para as farsas da monarquia. Uns são conservadores, apelidados de caranguejos; outros, liberais, alcunhados de chimangos ou ximangos. E brigam pelos papéis principais. Em meio a tantos aspirantes a chefes, surgem aqui e ali truões, como o lendário padre Alexandre Francisco Cerbelon Verdeixa, chamado de Canoa Doida, por andar um pouco caído para diante, a cabeça baixa pendendo para os lados, passadas curtas, mas muito rápidas, como informa João Brígido.
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Para chegar ao nome Palma, levei anos de leituras. Como se sabe, Baturité surgiu da aldeia ou missão jesuítica de Nossa Senhora da Palma. A atual cidade de Baturité, situada a cerca de cem quilômetros de Fortaleza, foi também palco dos acontecimentos do resumo de linhas atrás, quando ainda se chamava vila de Monte-mor o novo d’América. Antes de 1764, no entanto, denominava-se simplesmente Missão da Serra de Baturité, onde foram reunidos índios das tribos Canindés, Paiacus, Jenipapos e Quixelôs, todos Tarairiús, uma das famílias de tronco independente dos Tupis e Gês (a outra era a dos Cariris) que habitava o território cearense. A formação da missão se deveu, sobretudo, a uma solicitação feita em 1739 às autoridades de Pernambuco pelo capitão-mor dos Jenipapos, Miguel da Silva Cardoso. Em 1858 a vila passou a cidade e no ano seguinte aportava em Fortaleza a barca francesa Splendide, procedente de Argel, trazendo 14 dromedários, a seguir conduzidos a Baturité, onde resistiram algum tempo. Outra farsa imperial.
Como levar a sério uma História tão repleta de farsas e bufonarias? Assim também esta história, com seus personagens tão bufões quanto os bufões reais (ou imperiais).
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Outro projeto de romance contaria as histórias de diversas gerações de caboclos (descendentes de índios) da Serra de Baturité, desde a eliminação da aldeia até o século XX. Seria um romance longo. Um roman-fleuve. Desmembrado, esse projeto deu origem a quase todas as novelas e romances, como A Guerra da Donzela, A Busca da Paixão, Os Varões de Palma e Os Luzeiros do Mundo.
Criada Palma, outras histórias foram escritas, porém já sem nenhuma ligação ideológica com o projeto inicial, como O Cabra que Virou Bode, A Rosa Gótica, A Última Noite de Helena e Carnavalha. Quase todas escritas até 1990.
É desse período minha paixão pelos temas indígenas, sobretudo a História dos povos primitivos do Nordeste e do Ceará, em particular. Escrevi, então, contos como “Santa Sekiki”, em 1979.
Passada a euforia indianista, voltei-me para a recriação ou a invenção de Palma e seus habitantes. Aqui e ali, aproveitei um fiapo de memória, como em A Rosa Gótica. Agarrado a esses fiapos, eu me deixava embalar pela imaginação, como em Os Luzeiros do Mundo. Na verdade, quase tudo o que escrevi vem da imaginação, é invenção pura.
A fase de leituras dos clássicos estrangeiros e brasileiros acabou cedo, talvez em 1980, embora desde os anos 1970 eu viesse lendo escritores contemporâneos. Julgando-me escritor feito, pouco escrevi depois de 1990. Passei a ler a pedido dos amigos ou escritores novos. Recebia livros quase que diariamente. E foram ficando para trás muitas e muitas obras fundamentais da literatura universal. Escritas mais de duzentas narrativas curtas, uma dezena de narrativas médias, dezenas de poemas, resta-me reescrevê-las e publicá-las.
Fortaleza, fevereiro de 2006.
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