(João Brígido)
Um editor me pediu um escrito natalino para um jornal. Pensei num cartão, numa carta, numa cartona. Imaginei uma virgem e seu filho. Vasculhei a Bíblia, minha biblioteca. Cheguei a ler um auto pastoril. E terminei na Antologia de João Brígido. Passei o dedo pelo índice e fui dar na crônica “Uma manhã de Noel”. O livro tem quase seiscentas páginas. Parece-me ser esta a única crônica do livro, compilado pelo poeta Jáder de Carvalho, a tocar o tema do 25 de dezembro.
O livro é raro, porque publicado em 1969, em Fortaleza. E, não fosse ele, a crônica natalina de João Brígido seria mais desconhecida ainda, uma vez publicada apenas em jornal. Exatamente em 27 de dezembro de 1916.
O cronista narra uma noite de Natal “calma, festiva e boa”, sem “um atrito qualquer que merecesse reparo de censor menos indulgente.” Esperavam-se, talvez, distúrbios populares. A seca do ano precedente motivaria o famoso romance O Quinze, de Rachel de Queiroz.
“Uma manhã de Noel” comenta uma noite de Natal em Fortaleza, então pequena cidade de poucos milhares de habitantes. Segundo o cronista, mais de 25 mil pessoas saíram às ruas para aguardar a estrela-d'alva, costume quase desaparecido. E detalha a festa: “bebeu-se e muito e comeu-se do que reatava na terra; cantou-se, vozearam as bandas de música militares; franquearam-se todos os logradouros públicos e tudo foi alegria, esperança e seguridade” (...)
No Natal ainda se bebe e come, pelo menos uma parte da população. No entanto, já não se canta, nem se vêem bandas de música. Nas igrejas ainda se rezam missas do galo? Algumas famílias certamente continuam a matar perus. O cronista escreveu, no penúltimo parágrafo: “quem possui tantos dotes d’alma um dia possuirá a terra.” Passados tantos natais do louvor e da profissão de fé de João Brígido, muitas secas expulsaram o homem cearense e nordestino de suas terras; muitos romances foram escritos tendo por cenário a terra nordestina e por tema a seca, cujo ponto culminante é o Vidas Secas; muitos políticos chegaram ao poder sob promessas demagógicas de transformar o Nordeste do Brasil em um paraíso. Os sertanejos, no entanto, têm lutado pela terra. Se a mansidão é um “dote d’alma”, isso é lá com Papai Noel.
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