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domingo, 23 de julho de 2006

Ilusões de gato e rato (Nilto Maciel)




No meio da tarde, um gato deu por concluído o banho e a espulgação. Julgava-se limpo e livre de pulgas. E se pôs a espreguiçar, abrir a boca e fechar os olhinhos verdes. Sentia muito sono.
Estirou-se debaixo de uma cadeira e se entregou à leveza do nada. Havia bebido leite, água? Que iguaria almoçara? A gata vizinha gostava de amar no telhado ou no quintal? E os ratos, aqueles larápios noturnos?
Num piscar de olhos, já dormia, já sonhava. Esquisito sonho. Era um ratinho cinzento e esperto. Vasculhava a cozinha à cata de um naco de queijo que lhe quebrasse o longo jejum. Andava por armários, prateleiras, latas, caixas. Súbito descobria o queijo de seus sonhos. Redondo, branco, enorme.

Nem queria acreditar naquilo. Talvez sonhasse. Ou se tratasse de armadilha. Os homens não perdiam o hábito da crueldade e da perfídia. Refinadas feras!

Aproximou-se do queijo, um olho na porta, outro na vida. Cheirou, a boca se encheu de água, encostou o focinho na casca. Deu mais uma volta pelo ambiente, olhos e ouvidos abertos. Não, ninguém para estragar sua festa.

E deu a primeira lambiscada.

Até fechou os olhos para melhor sentir a delícia que invadia sua boca, seu corpo inteiro.

De repente, um calafrio percorreu-lhe a espinha. Virou-se, e eis diante de si um enorme e belo gato.

Tudo então se tornou feio para ele. Vida de rato — desgraça pura. Escondido nos buracos, perseguido dia e noite. Um inferno!

Corria, e o felino no seu rasto. Metia-se atrás dos móveis e a pata asquerosa o cutucava.

Amedrontado, vendo a morte a um palmo de seu focinho, o ratinho decidiu arriscar, buscar o derradeiro abrigo – estreita greta na parede. E correu. O felino deu um salto, escorregou, miou.

Coração aos pulos, o pobre rato conseguiu alcançar a fenda salvadora. Não, não seria aquele seu último dia. Muitos queijos roeria ainda. Muitas emoções sentiria ainda.

Nervoso, enfiou a cabeça no buraco, forçou a passagem. Porém o devorador de ratos já abocanhava seu traseiro. Mordia, arrastava-o para o suplício.

Preso aos dentes do monstro, o roedor apenas chiava. Só lhe restava esperar a morte. Nem Deus o salvaria das garras daquele demônio. Nem milagre. Talvez muita sorte. Sim, os gatos costumam praticar um ritual macabro, antes de matar e devorar suas presas. Fingem dar fim à tortura, concedendo-lhes um minuto de liberdade. A vítima tenta escapar, iludida, e recebe mais violenta mordida. É sempre assim. E quem não sabe disso?

Se tivesse sorte, aproveitaria da melhor maneira a oportunidade de fugir. Não buscaria mais a greta estreita. Esconder-se-ia debaixo da geladeira, dentro do fogão, detrás do armário. De tanto esperar, o torturador desistiria da perseguição. Cansado, dormiria, o preguiçoso.

Não havia concluído ainda seu raciocínio, e eis que o gato o libertou dos dentes, largando-o ao chão. Correr logo seria loucura. Melhor aguardar um cochilo da fera. Quando fechasse os olhos, coçasse a barriga, virasse a cabeça para alguma barata idiota.

O felino lambia os beiços, os olhos enormes fitos no rato encolhido, pensativo.

Aquele maldito não cochilava, não fechava os olhos, não coçava a barriga. Nem aparecia uma barata, uma aranha, um inseto qualquer.

E se se transformasse em gato? Por que não? Melhor ainda se aquele patife se transformasse em rato. Então a história seria outra.

Na sua ilusão, o ratinho perdeu o acanhamento, cresceu, levantou-se do chão e pôs-se a miar.

Aquele animalzinho metido a valente precisava levar uma boa lição.

E partiu para o gato.

Ocorreu então a cena mais trágica da história: o felino desferiu uma tapa tão espetacular que o mísero rato rodopiou feito um pião e estatelou-se no chão. Não satisfeito, de um salto o malvado caiu sobre a inerme vítima e cravou-lhe os dentes.

— Deixa-te de ilusões, rato.

Debaixo da cadeira, o gato deu um pavoroso miado. E pôs-se a lamber as doídas ancas.

Já era noite.
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