A Secretaria de Cultura e Desportos entregou ao público no fim de 81 o livro de contos de Nilto Maciel — Tempos de Mula Preta. É este o primeiro livro do autor, embora seja Nilto Maciel um veterano nas letras, com alguns trabalhos publicados em revistas e jornais, outros incluídos em volume, como em Queda de Braço, uma antologia do conto novo, que ele mesmo organizou e onde se salvam pouquíssimos nomes. Mas ele é apenas responsável pela parte que lhe toca. O resto que se dane. Mas há, sem dúvida, figuras de nível literário entre essa coorte heterogênea e desordenada, como Airton Monte, Carlos Emílio Corrêa Lima, Francisco Sobreira e poucos outros. Mas é do seu Tempos de Mula Preta que queremos falar agora.
O livro andou metido em concurso da própria Secretaria de Cultura, já acima mencionada, e parece que tirou “Menção Honrosa”, essa flor-de-lis que todos nós conhecemos pelo cheiro açucarado com que os senhores membros da Comissão Julgadora de Concursos Literários costumam gratificar os finalistas.
Ora, em matéria de Concurso Literário, vai bem quem sobra, pois estes, como todos sabem, são cartas marcadas, dadas de colher para os amigos, que por vez vêm acolitados por outros amigos e até resguardados por figurões politiqueiros. Isso não nos causa surpresa. Depois do resultado, ainda recentemente, do Concurso Nacional de Poesia Prêmio Cruz e Sousa da Fundação Catarinense de Cultura, em que Ruy Espinheira Filho arrebatou o 1o. lugar com "As Sombras Luminosas", a pior treva que já se abateu sobre a poesia nacional, tudo pode acontecer, inclusive o impossível. Pois aí está o Ruy Espinheira entre as rosas da glória, classificado entre 2.300 concorrentes. O livro dispensa comentário. Portanto, Nilto Maciel está de parabéns. Fernando Pessoa “perdeu" para um poeta menor de Portugal. E são tantos os exemplos...
Tempos de Mula Preta é um dos livros de conto mais ousados que foram editados nesses últimos dez anos, não só em termos do Ceará, mas em todo o País, ao lado de outro grande livro, este de autor consagrado pela crítica e de nome firme na literatura — Os Doze Parafusos, do mestre Moreira Campos. Podemos mesmo dizer que essas duas obras (embora pese ainda a inexperiência de Nilto e ressalte a maturidade de Moreira Campos) se projetam no cenário do novo conto brasileiro como dois marcos dos mais expressivos e significantes no gênero.
Claro que o confronto Nilto Moreira é apenas ponto referencial, no que de perto as duas obras oferecem de novo e singular na rutura da narrativa tradicional, e mais que isso, na licenciosidade da linguagem a que ambos os textos se propõem. E esse “confronto” não podia ser de outra maneira. Moreira Campos é autor de uma obra uniforme e grandiosa como expressividade literária, e Nilto Maciel é apenas, por enquanto, dono deste notável Tempos de Mula Preta.
Mas é evidente que tanto Tempos de Mula Preta como Os Doze Parafusos desmantelam a estrutura do conto, mesmo reconhecendo que há no gênero, em nossa literatura, nomes para os quais se deve tirar o chapéu em reverência, como Dalton Trevisan, Samuel Rawet, João Antônio, Rubem Fonseca e alguns outros.
O conto que abre o livro de Nilto Maciel, "Ave-Marias", é uma peça antológica. Não se pode esquecer a figura primitiva e descomunal do Coronel Izidoro, “pés duros pilando o chão, buracos da cara soltando fumaça", com seus rompantes, o clima sacro e profano da estória (antiestória), numa atmosfera pesada, de crime, que não chega a acontecer (isso pode pensar o leitor menos atento à narrativa), pois o fantasma da tragédia está plantado no ar do tempo, na transfiguração dos elementos: o gato "grunhe" e não mia, como seria natural. Mas a estória se situa no sobrenatural e no fantástico. Daí o clima grandiloqüente de tragédia grega, como numa peça de Ésquilo, cenas em que se misturam o sagrado e o profano, como nas procissões do teatro grego, onde o Corifeu guia o pagode dionisíaco acompanhado dos sátiros.
O jipe do Coronel Izidoro da Paixão é como um animal. E aí temos “essa sucata” como num "flash" cinematográfico. “Pela 7 de Setembro Izidoro cavalga o jipe a toda, esporeia, chicoteia, upa, upa, bicho danado". Em outra passagem: “Pela Dom Bosco o jipe pula, relincha, peida, em tempo de voar". A figura de Carlinhos, safadeco, é outra imagem fixa em nossa retina, espécie de garanhão doméstico, sem aquela fúria incontrolável de Izidoro, que "montado no jipe escaramuça pelos becos do Potiú”. "Ave-Marias" é um conto pleno de poesia e licenciosidade, apesar do ar de terror e maldição que se levanta da estória. O pano de fundo é o cabaré de Ana Souto, onde acolhe mulheres a toa, inclusive Maria das Graças, a filha do Coronel Izidoro, enquanto Carlinhos, o amante, coberto de carrapichos, “força os arames da cerca para que a moça passe". E aqui estão a chave e o enigma do conto, a pedir do leitor uma explicação obviamente desnecessária.
É muito difícil dizer de um livro de contos como este qual o melhor. Cada estória tem seu destino certo, como acontece à vida das criaturas. Mas "Ave-Marias" é, sem dúvida alguma, o ponto mais alto do livro, sem esquecer "O Bestial Carlos Bayma". E outros tantos como "As Sete Onças de Néo" — uma narrativa que lembra, por analogia, o personagem mais famoso de Chico Anísio — Pantaleão. Por esse conto, vê-se que Nilto Maciel sabe conduzir suas estórias, a maioria arrancada às vivências sertanejas, mas cada uma vista sob um ângulo diferente, guardando um clima denso e uma ironia de mestre, em gênero tão difícil como é o do conto.
(Política da Arte (II), - Ensaios de Crítica Literária, Banco do Nordeste do Brasil, Fortaleza, CE, 1986, págs. 76/78)
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