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domingo, 9 de julho de 2006

Do Ceará, um Borges (Francisco Miguel de Moura)



 
Até hoje permanece o mistério: Por que o homem gosta de histórias? O homem da caverna, para espantar a solidão, o frio, o medo, inventava e contava. Ainda não sabia escrevê-las. O homem moderno escreve-as para leitura, na solidão – para espantar a solidão. Mudou a maneira de conceber histórias, de contá-las. Contos de fada, histórias da carochinha, contos fantásticos, maravilhosos, histórias de trancoso – estas lembrando Gonçalo Fernandes Trancoso, o português que apanhou muitas na tradição e adaptou-as para “proveito e exemplo”. Mas o conto moderno às vezes nem tem história, é um momento tenso da vida, da alma, geralmente de um personagem só. Um mestre mundial foi o francês Maupassant, outro foi o russo Tchekhov, também inovadora seria a inglesa Mansfield. A essa tríade se juntaria Machado de Assis, glória do conto mundial. Mas não tivemos tantos nos primórdios. Eles eram essencialmente romancistas. A partir do modernismo fomos aparecendo. Mas a safra maior de contistas viria nos anos 60 e principalmente 70. Um da década de 70 é cearense, quase não freqüentou a prateleira das livrarias, nem as colunas dos jornais. Porém seu trabalho vem constante, forte, árduo, em silêncio. Trata-se de Nilto Maciel, seu primeiro livro, Itinerário, como ele próprio diz, teve a primeira edição em Fortaleza, em 1974. Uma edição acanhada, de 200 exemplares. Pode? Pode. Na província tudo é possível. O pai do nosso romance não é de lá? Alencar foi um monstro, grande demais para sua época. "A crítica não tomou conhecimento do livrinho", adverte Nilto Maciel, na primeira página da 2a. edição, agora lançada pela Scortecci, 1990, São Paulo. E mais: "Dois ou três leitores amigos me puxaram as orelhas. A situação social e política do Brasil merecia literatura mais engajada”, disseram. “Não concordei com a opinião dos amigos e não mudei de estilo. Mudei, sim, muito depois, a linguagem daqueles contos."

A advertência de Nilto Maciel é séria e sábia. Não é preciso ser engajado para contribuir, melhorar. A contribuição do escritor é a boa literatura, é a autenticidade. É preciso ter a coragem das grandes ousadias, da inteira busca a partir da linguagem e das origens. Uma grande e ousada escritora atual, também contista, Julieta de Godoy Ladeira, me diz em correspondência recente que “a arte é a única coisa limpa que resta. Talvez ela salve.” É preciso ler, é preciso escrever, é preciso divulgar. Contos como “Teoria da Desfiadura” abrem brechas na consciência, ajudam a manter a luz do fim do túnel.

A advertência de Itinerário, de Nilto Maciel, é séria e motivadora como espinho crítico. Li o livro em sua segunda edição. Recomendo-o sobretudo aos jovens, pela concisão do estilo, poeticidade do desenvolvimento, concretude e brevidade dos exercícios ficcionais. Há surpresas de finura na linguagem, de aproveitamento máximo dos temas, de finalização — acho até que por esta última qualidade se caracterizam. Parecem, a maioria, propositalmente reduzidos ao final, talvez como impacto de estrutura, talvez como motivação poética. Fábulas, anti-histórias, crônicas do sentir e do ser, vão do alegórico ao zombeteiro mas não descem ao anedótico, eis algumas das estratégias usadas no seu movimento de criação. Teria lido Jorge Luís Borges? Certamente. Leitura bem aproveitada, revertendo-se em riqueza e consciência. Digo certamente porque seria julgar mal dizer que um bom contista deste século não leu Borges. Maciel, como nós outros, terá lido o suficiente para não cair em imitação. E não caiu, nem deste nem de outros, por grandes que sejam.

É preciso ver que as qualidades ditas estão confirmadas, e até melhoradas pelo trabalho da linguagem – cada vez mais rica – no Punhalzinho Cravado de Ódio, de 1986, publicado pela Secretaria de Cultura do Ceará. E aqui Nilto Maciel continua a tendência para abreviar os finais, sempre com um impacto filosófico ou lírico, e persiste na linha do alegórico, do picaresco, com uma criatividade apreciável que continua fazendo lembrar o argentino Borges. Basta ler “Oráculo”, por exemplo. Ou “Anedota Medieval”, ou “O Pecado de André Gide”, do primeiro livro. Continua também o exercício de inversão dos termos do discurso e da renovação das metáforas e imagens, sem torcer caminho para esconder-se do regional ou falseá-lo como outros estão fazendo para agradar editores sem escrúpulo. Não, Nilto Maciel, contista cearense, para o Brasil, talvez o melhor da década de 70, participou dos movimentos renovadores no seu Estado, e vive em Brasília onde funda uma revista literária. Aliás, na década passada, ele participou da revista “Ficção”, sendo selecionado para uma das suas edições e entrou em Queda de Braço, uma das melhores antologias do gênero, naqueles anos. Um autêntico contista dos anos 70, portanto, que continua sua trajetória firme nas letras. Contos como “Aqueles Homens Tristes” e “As Irreversíveis Lavas do Vesúvio” podem e devem ser incluídos em antologias do conto daqueles anos e dos melhores contos do Brasil – no futuro. É preciso, porém, que os críticos, professores e historiadores leiam os homens da província.

Se continua o mistério que falei no início, se continua o gosto dos homens de ouvir os outros, de ler os outros, de escrever histórias ou contos para o sonho dos outros, e até para o sono, não restará dúvida que ficarão mais gravados, serão mais amados e permanentes aqueles textos que tenham inteireza e densidade, os mais artísticos. Os de Nilto Maciel ficarão, acredito, enquanto restar no homem um cantinho para a leitura.

Praia de Amarração, 27 de junho de 1991.

(Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado do Piauí, Teresina, Piauí, janeiro de 1992, e jornal O Dia, Teresina, 11/1/1992, sob o título "Um Borges no Brasil")
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