Nilto Maciel é atualmente, sem nenhum favor, um dos nomes mais representativos da moderna literatura brasileira. Autor de vários livros de ficção, tem praticado, com igual sucesso, o conto, a novela, o romance e a poesia, revelando a extraordinária versatilidade do seu talento criador.
Suas produções mais recentes estão enfeixadas no livro de contos As Insolentes Patas do Cão (João Scortecci Editora, 108 p., São Paulo). O leitor razoavelmente familiarizado com a disciplina literária não terá dificuldade em concluir que entre essas narrativas, todas elas de excelente extração, existem algumas obras-primas da moderna ficção brasileira.
Nilto Maciel é um narrador admirável. Possui todas aquelas virtudes (talento, imaginação, invenção, técnica de narrar e de expor) que de modo algum podem faltar a um bom contador de histórias (ou estórias), se quiserem. O tecido de sua ficção é um complexo engenhoso de conteúdos essenciais. Nunca será demais louvar-lhe a extrema habilidade em conduzir a fabulação das narrativas e o desenvolvimento harmonioso das situações ficcionais, muitas vezes transportadas ao plano do chamado realismo fantástico.
A ficção de Nilto Maciel tem a paixão tchekhoveana pelo detalhe, pelo traço contundente que define de pronto o caráter do personagem, pela irreverência e pela precisão com que desenha caracteres e situações, sejam estas de índole jocosa ou de cunho dramático. Mas também cultiva, em altíssimo grau, gosto acentuado pela arquitetura dos labirintos e pela recriação de temas literários da antigüidade clássica, sobretudo na esfera da mitologia, chegando a ombrear-se nesse tocante com o engenhoso Jorge Luís Borges, tido e havido como uma espécie de monstro sagrado da literatura universal.
A narrativa "Incubação" (p.14) é uma peça extraordinariamente vigorosa, desenvolvida numa atmosfera de grande densidade onírica, em que fantasia e realidade se tocam sutilmente e em que são praticamente imperceptíveis as fronteiras da poesia e da prosa. O conto "A Fala dos Cães”. (p.15) também se alça à categoria de ficção de primeiro plano. A recriação do mito de Acteão, o deus que foi devorado pela própria matilha depois de surpreender Diana no banho, me parece superlativamemte perfeita. Também aqui se mostra profundamente sutil o liame entre mito e realidade. A gente lê o conto e só vai perceber que se trata de uma lenda no final da narrativa, onde se esclarece que a deusa, em sinal de vingança, transformou Acteão num cervo para que os cães o devorassem.
O conto "Ilusões de Gato e Rato" (p.42) possui todos os ingredientes de uma fábula moderna, onde o bichano encarna a selvageria do poder, e o rato faz as vezes de vítima indefesa. É uma história com todas as implicações alegóricas de uma narrativa kafkeana. Um gato sonha com um rato. Na dinâmica do sonho, o rato chega a ocupar os espaços mais nobres da narrativa. Em dado instante, imagina que se transforma em gato e parte para o agressor. O revide do gato não tardou: "caiu sobre a inerme vítima e cravou-lhe os dentes". Mas, quando o sonho acabou, "o gato deu um pavoroso miado. E pôs-se a lamber as doídas ancas". O motivo central desse conto conduz ao seguinte enunciado: um gato sonha com um rato, que sonha que é um gato. A moral da estória pode ser resumida no seguinte: os humildes que sonham em ser poderosos são duramente castigados pelos deuses.
Um fato que desperta a curiosidade do leitor é a presença ostensiva de gatos e ratos na ficção de Nilto Maciel. Uns e outros circulam arrogantemente em alguns dos melhores contos do livro, numa promiscuidade antropomórfica que só encontra paralelo nas célebres fábulas de La Fontaine. Importa salientar que, na ficção do autor cearense, a dicotomia gato versus rato assume uma conotação de hierarquia nitidamente social, onde o gato é sempre o mais forte, convertendo-se o rato em objeto de massacre. Algumas vezes é o homem que se transfigura em gato ("Os Comensais de Afonso Baio") e entra em luta cerrada contra os ratos. Mas, concluído o extermínio dos roedores, "os gatos da casa fazem um banquete digno do rei Sardanapalo. E assumiram o lugar dos ratos na vida de Afonso Pires Gatacho Baio". A palavra "Gatacho” parece exprimir intenção velada do autor no sentido de reduzir Afonso Baio à simples condição de felino.
O problema da solidão do homem no mundo moderno, sobretudo daqueles que vivem nas grandes cidades, está admiravelmente desenvolvido em "Casa Mal-Assombrada" (p.45). outro dos melhores contos do livro. É uma narrativa de grande densidade formal, pontilhada de entoações agônicas e de ressonâncias metafóricas. A busca desesperada de Hulda converte-se na busca da felicidade, do paraíso perdido. Mas Hulda evapora-se, não está dentro de casa, não se encontra em nenhuma parte do mundo. "As crianças dormiam em paz. A cozinheira estendida no catre, desarrumada. O cachorro latia, o vento abanava as roupas estendidas no arame, a lua clareava tudo". Esse conto magistral tem todas as seduções de forma e de conteúdo para ser considerado um poema dramático de primeiríssima qualidade.
Grande parte do fascínio da escritura ficcional de Nilto Maciel decorre justamente dessa picardia inerente à índole do brasileiro, dessa inarredável sedução de nossa gente pela irreverência e pela malícia. Alguns dos recursos simbólicos empregados nessas narrativas terão, provavelmente, alguma relação de parentesco estético com certas soluções peculiares à literatura de cordel. O que não nos parece fora de propósito, haja vista que as raízes do autor são de origem nordestina, sendo lícito pensar que ele assimilou certas nuances da índole romanesca do cordel e, agora, as introduz na arquitetura de sua criação literária.
O novo livro de Nilto Maciel reafirma as suas qualidades de excelente narrador, de ficcionista comprometido com as implicações da modernidade literária e com a flexibilidade das estruturas expressivas que dão suporte e colorido à linguagem popular. Os seus contos, até mesmo aqueles que se inclinam para abordagens metafísicas, jamais falsificam a realidade. Estão sempre de acordo com os padrões e a dinâmica estrutural da língua viva, nervosa, inquieta, palpitante, a língua em que o povo exprime as suas emoções, sua alegria; sua dor, os seus cânticos de amor e de paz.
(Revista Literatura n.º 3, Brasília, dezembro de 1992, e no livro Textos & Contextos, UFC, Fortaleza, 1995, págs. 21/24)
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