Cena n. º 1
O casal caminhava distraidamente pela calçada. Parecia em lua-de-mel. Ele falava, ela sorria. Diante da Casa Preard, o sorriso da moça se desfez. Um rapaz se havia aproximado dela e dirigia-lhe a palavra. Gesto de susto, esgar de espanto. O marido (ou namorado) parou e fez o outro também parar. E sacou da cintura um revólver. A moça se encolheu, gritou e abraçou-se ao companheiro.
— Vou matar esse atrevido. Dar um tiro na boca desse moleque.
Não saiu bala nenhuma da arma. Só muito suor e tremor. O rapaz já ia longe, sumido no meio da multidão.
Cena n. º 2
O casal caminhava. Mudos, automáticos, sonâmbulos. Ele fumava, ela passava a língua nos lábios. Diante do Posto Telefônico da Rua Gione, ela acordou. Um sujeito perguntava se podia acompanhá-la. Talvez um cego. Ora, não dava para ver o marido ao lado?
Também acordado, o homem mudo sorriu, parou e se interessou pela conversa. Que dizia o jovem? Poderiam ir a um restaurante. Aliás, fossem na frente. Ele iria depois.
Cena n. º 3
Estava um homem sentado num banco da praça. Fazia muito calor, o sol abrasava. Restava descansar e ver os outros passarem.
Outro homem sentou-se a seu lado. Calor, falta de chuva, céu azul.
— Quer me vender uma orelha?
O primeiro homem olhou, assustado, para o outro. Talvez tivesse falado em ovelha. Melhor não responder nada.
O outro repetiu a proposta. E olhava, com seus olhos muito azuis, para a orelha do vizinho.
— Não vendo, mas troco.
O de olhos azuis assustou-se. Com certeza o primeiro não ouvia direito. Muita cera no ouvido. Talvez tivesse compreendido ovelha em vez de orelha.
— Estou falando de orelha — gritou.
— E eu estou falando de olho. Troco uma orelha por um olho.
Cena n. º 4
O homem pôs-se a atravessar a rua. Carros iam e vinham, em disparada. Súbito, o homem voou. O carro parou. Algumas pessoas correram para junto do corpo caído. Saía sangue da cabeça do atropelado. Do nariz, da boca, dos ouvidos. O motorista atropelador olhou para um lado e outro. Já havia gente demais ao redor do homem. Ligou o motor e sumiu.
— Está quase morto — disse uma pessoa.
E retirou da bolsa uma navalha. O homem não sentiria dor nenhuma. Estava quase morto.
— Corta logo, Pedro.
O homem caído gemeu, quando a navalha decepou-lhe a orelha direita.
— Que belo orelhão!
Cena n.º 5
Armados de revólveres, um grupo de rapazes assaltou a estação de rádio. E prendeu num banheiro radialistas e funcionários em geral. Menos um. Precisavam de sua orientação técnica. Queriam ler um manifesto político. O governo representava uma minoria. Havia fome, miséria, desemprego.
Leu o texto o nervoso Jesonias, aplaudido pelos companheiros.
Tudo em vão, porém. A rádio estava fora do ar.
Cena n. º 6
Alegres, rapazes e moças lotaram os estúdios da rádio. O locutor pediu silêncio. Não podia trabalhar daquele jeito.
— Só um minutinho — sorriu uma das moças.
— Hoje é o Dia da Poesia — argumentou outra.
Só queriam um minutinho. Célia iria ler um poeminha. Pouco mais de dez versos.
Conduzido para fora do estúdio, o locutor não ouviu uma só palavra do manifesto. Só a luta armada libertaria o país das mãos sanguinárias dos generais.
Imediatamente após a leitura da declaração, procederam-se prisões de alguns líderes oposicionistas. As forças armadas se puseram em prontidão. Talvez se decretasse estado de sítio.
***
As seis cenas narradas foram protagonizadas por participantes de uma gincana. Muitas outras aconteceram no mesmo dia. Quase todas semelhantes a estas.
Promoveu a brincadeira uma rede de televisão. Para divertir a cidade — dizia o locutor.
Ao término da competição, os dirigentes da TV falaram em êxito total e revolução na comunicação. Apesar de alguns incidentes. Inevitáveis, segundo os comunicadores. Aliás, sem eles, os incidentes, a brincadeira não teria graça nenhuma.
Uma das tarefas propostas consistia em um homem abordar uma mulher na rua. E convencê-la a acompanhá-lo a qualquer recinto onde pudessem manter relações amorosas. A proposta deveria ser feita diante do marido, amante ou namorado da mulher.
A cena seria filmada, de longe, por cinegrafistas da TV.
Os mais medrosos abandonaram a gincana ao tomar conhecimento do conteúdo da tarefa. Muito arriscado. Ainda havia homem ciumento e violento.
Realmente, ocorreram violências quase incontroláveis. A custo, o pessoal da televisão conseguiu convencer maridos, amantes ou namorados de que se tratava de brincadeira.
O protagonista da cena n. º 2 julgou ter cumprido a tarefa. Os julgadores, porém, disseram o contrário. Nenhum homem normal entregaria sua mulher a outro. Os três se haviam mancomunado, com certeza.
Algumas equipes recusaram participar da tarefa ora mencionada. Viram com naturalidade, no entanto, a da orelha. Ora, que importava uma orelha? Nenhum mendigo deixaria de vender uma orelha a bom preço. Enganaram-se, porém. Todos os mendigos abordados tiveram reações surpreendentes. Uns chegaram a agredir os autores das propostas. Fossem comprar orelhas de ricos. Valiam mais, além de serem limpas e sadias.
A tarefa consistia em levar aos estúdios da televisão uma orelha humana. Direita, esquerda, masculina, feminina, pequena, grande. De qualquer cor ou feitio.
Não valia, no entanto, orelha de defunto. Aliás, o ato de cortar a orelha deveria ser realizado diante das câmeras, no estúdio, na presença da comissão julgadora.
Assim, não valeu o esforço dos rapazes da cena n. º 4.
Uma das tarefas consideradas de mais fácil realização consistia na leitura pública de um manifesto político. A mensagem deveria ser transmitida por qualquer estação de rádio da cidade.
***
Noite de gala. Entrega dos prêmios milionários aos vencedores da gincana. Os patrocinadores felicíssimos. E a Rede de Televisão Mundo Livre de parabéns por divertir tão sadiamente o povo.
/////