Por que estás abatida, ó minha alma?
Por que te perturbas dentro de mim?
Salmo 42 — O Livro dos Salmos
Cansado de mirar os quadros pendurados às paredes, João Batista se pôs a andar pela sala. Olhava para o chão, as pontas dos pés, em passo cadenciado de sentinela. Sentiu dor na nuca, parou perto da mesinha de centro e bruscamente levantou a cabeça. A lâmpada acesa parecia o Sol ao meio-dia. Martirizava-o a liberdade de ir e vir dentro de casa. Ninguém para falar mal das autoridades. Ninguém para lhe fazer perguntas cotidianas. Ninguém para incomodá-lo, até mesmo insultá-lo.
Talvez na rua encontrasse um homem revoltado. Ouviria mil ofensas ao Presidente, ao Governador, ao Prefeito. Poderia mesmo dar de frente com um policial astuto que visse nele o monstro da Rua Morgue. Tentaria convencer o polícia de que nem sabia onde ficava tal rua.
Na pior das hipóteses, um bandido o assaltaria. Durante alguns minutos se veriam frente a frente. Trocariam palavras, mesmo ásperas. O desalmado salteador levaria seu relógio, seu dinheiro, seus sapatos.
Não, nada de violência. Com certeza a rua estaria repleta de belas mulheres. E pelo menos uma delas solitária, necessitada de companhia.
João Batista baixou a cabeça, olhou para a porta fechada e partiu em busca da companheira ideal.
Mal chegou à rua, avistou a banca de jornais. E qualquer coisa o conduziu até lá. Talvez o bigode do jornaleiro.
— Já chegou o Diário?
João Batista nem ouviu a resposta. Nem sequer olhou para o enorme bigode do homem. Um jornaleco qualquer anunciava o leiloamento do diário de Judas Iscariotes.
— Quanto custa?
Meteu a mão no bolso, agarrou o jornal e se retirou. Queria ler sossegadamente aquela notícia maravilhosa.
O jornaleiro assanhou o bigode e pôs-se a contar dinheiro.
João Batista refestelou-se num banco da praça e arregalou os olhos para as letras do jornal. Interessava-lhe o diário do apóstolo da traição. Nada de abalos sísmicos, viagens de naves soviéticas, descobertas de animais pré-históricos. O discurso do Presidente não merecia comentários. O jogo de futebol, a cotação do dólar, as belas pernas da miss — tudo sem atrativos.
Um velho de roupas sujas e rasgadas aproximou-se dele e pediu uma esmola.
— Pelas chagas de Jesus! — completou.
João Batista olhou para o pedinte, sorriu e mostrou-lhe o jornal.
— Leia isto primeiro.
— Eu não sei ler, meu senhor.
— É uma notícia muito interessante. Fala do diário deixado por Judas.
— O traidor, aquele que entregou Jesus para ser crucificado?
— Sim, aquele mesmo.
O mendigo pediu licença para sentar-se. Sentia-se cansado, faminto, solitário.
— Na verdade, são apenas trechos, partes do diário. Foram encontrados em Jerusalém por um grupo de pesquisadores suecos. Escritos em hebraico.
— Deviam ter queimado tudo — observou o velho.
— Nada disso, meu amigo. Trata-se de um documento valiosíssimo.
— Que valor? Essa coisa não vale nada. Um homem que nem Judas...
— Pois fique sabendo que o tal escrito foi leiloado em Nova Iorque e o ganhador pagou uma fortuna.
— Deve ser algum judeu — advertiu o mendigo.
— Não, é um inglês chamado John Mock.
— É um nome engraçado.
Uma jovem a rebolar-se olhou de soslaio para os dois homens. Nenhum deles se interessou pelas ancas dela.
— Sabe o que Judas escreveu?
— Não.
— Ele fala o tempo todo de sua grande angústia de oprimido. Odiava os opressores romanos e lutou a vida toda contra eles. Ouça só essa frase: “Os meus ossos já se apegam à pele, por causa do meu dolorido gemer”.
— Deve ser tudo mentira — rosnou o pedinte.
— Ele acusa Jesus de trair a causa dos judeus, de não se dedicar à luta contra os romanos.
— Isso é uma heresia, meu senhor!
— Não sei do que se trata. E, se for heresia, isso não tem a mínima importância histórica.
— O que o senhor quer dizer?
— Escute esta outra frase: “Vou passando, como a sombra que declina”. É poético, não é?
— Vou me retirando.
— Espere, espere um pouco. Deixe-me ler o resto da notícia.
Nada, porém, impediu a retirada do mendigo. Irritado, João Batista rasgou o jornal e levantou-se do banco. A passos largos, tentou reencontrar o velho de roupas sujas.
Mais adiante parou, lembrou-se do jornal e se pôs a andar.
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