A gente nunca sabe quem é de fato o Brasil literário. Temos um elenco de bons nomes na cabeça, pronto para ser repetido quando alguém nos pergunta a respeito de autores brasileiros novos ou mais ou menos novos, mas a quantidade de escritores brasileiros de qualidade que todos, mesmo nós, escritores, desconhecemos, chega a ser um assombro. De modo que é preciso ter muito boa vontade (e isto é coisa de poucos) com as coisas do Brasil para se descobrir escritores longe, muito longe do Sudeste – supostamente o centro de todas as coisas – que escrevem bem, que publicam muito, têm uma longa vida literária e permanecem desconhecidos.
Caso de Nilto Maciel. Cearense de Baturité, nascido num 1945, Nilto tem muitos livros de romance, ensaio, conto, publicados desde os anos 70, mas, só vim a saber de sua existência quando ele se dispôs, por ter lido a respeito de meus livros em algum lugar, a me mandar um exemplar de “A leste da morte”, seu último livro de contos. E há um pecado de indiferença ou desleixo meu nisso, porque nos roçamos até, estivemos juntos numa antologia de contos de escritores brasilienses, de 2004, na qual entrei por deferência especial de Ronaldo Cagiano, pois brasiliense não sou. Nilto sim, viveu em Brasília, tinha um conto na antologia por lógica e mérito e eu não descobri.
A ironia é que nem as antologias aproximam muito os escritores, neste país. Ficam contíguos em páginas, trombam-se até, em noites de autógrafos, mas tudo se dilui no emparedamento individualista, nas solidões desconfiadas, esquivas. Tornam-se, em geral, leitores silenciosos uns dos outros, isto é – quando se dispõem a ler com boa vontade o que os outros escrevem. Quando há identificações, interesses comuns, surgem patotas espasmódicas, militantes, irritadas, intolerantes, e não solidariedades verdadeiras. Nada é mais fácil de ser desfeito que um grupinho literário. Nasce sempre com tantos egos pontudos que já cheira a dissidência infalível nos cueiros.
O certo foi que gostei de “A leste da morte” porque, entrando pelo livro como por uma casa desconhecida, fui descobrindo contos que são verdadeiras porradas, com a contundência social que sempre espero dos melhores escritores, temperada por um estranho humor. Nilto, que é filho da literatura brasileira produzida nos difíceis anos 70, continuou a escrever sem se tornar nome nacional e desembocou numa democracia de amplas avacalhações, nesta Coisa em que vivemos. Conhece a nossa funda perversidade e nossas grandezas incompreendidas. Sabe que há pouca esperança para os lúcidos.
Escolheu bem o título de seu livro, porque um leitor que escolha começar a ler a coletânea pelo conto “A leste da morte” vai encontrar um pouco do resumo da atmosfera geral nessa história de um Tarado, de um bruto, um animal que atemoriza a fictícia cidade de Palma. Quem é ele, não dá para saber. E pode ser que, ao capturá-lo no fim, para botar a paz no lugar, homens da cidade tenham prendido um desconhecido qualquer. Porque precisam exorcizar é o seu medo, anular a existência do monstro, feito aquelas hordas que decidem condenar o “M” de Fritz Lang em “O vampiro de Dusseldorf” porque é um incômodo para o tranqüilo mundo do crime. O criminoso se parece demais com seus perseguidores. O Tarado é o segredo que está debaixo de todas as peles, sua brutalidade desnuda a brutalidade geral. O Tarado é um incômodo para o conformismo doentio de Palma. Pode estar perto do Elo Perdido, do Pitecantropo. E ele me incomodou mais ainda porque uma variação sua freqüenta um conto que eu já tinha escrito há anos. Não era que Nilto, esse cearense que eu não conhecera nunca, andara vendo coisas que eu via, personagens que eu também sentia e criava? Comunidade enorme das almas desgarradas, nós, escritores, cubículos presunçosos, mal sabemos quanto nos parecemos e nos precisamos, até o dia de um reconhecimento assim... Estamos todos vendo o mesmo Brasil. Mas, como vivemos apartados, julgando-nos originalíssimos em nosso isolamento!
Em contos curtos como “Trem-Fantasma” e “O menino e o lobo”, o poder de sugestão da prosa de Nilto, que é a um só tempo presa ao realismo, mas namora com descaramento a alegoria e o absurdo, é admirável. Gosto da rudeza com que constrói suas tramas, percorrida por um humor viril e desiludido. Assim, retorna via “Aníbal e os livros” um certo sujeito que, obcecado por canibalismo – vamos pensar imediatamente no Hannibal “The Cannibal” Lecter de “O silêncio dos inocentes” – está muito perto do personagem de “Caetés”, de Graciliano. Mas, de algum modo, brincando com nomes – Nilto gosta dos estrambóticos, de uma brasilidade aberrante – e com coisas que julgamos conhecer, ele sempre dá pinotes, e nos surpreende no fim.
Fazia tempo eu não lia contos assim, que eu não saiba como iam acabar, sinceramente. E, quando acabam, deixam no ar novas perguntas. Quase como se Nilto brincasse de Kafka, de Borges – os ecos da prosa desses dois estão lá – apenas para embaralhar o jogo. Porque ele é muito brasileiro. Seus personagens delirantes ou realistas são de uma triste e cômica brasilidade. Nilto está empapado de estranheza nossa, de dor nossa, de uma coisa muito nossa, que tanto nos afaga quanto nos dilacera. Na verdade, algo nos morde nessa espécie de riso torto, gargalhada com lágrima, que ele coloca em seus contos. Parece que ele encontrou, nos seus pequenos painéis sociais, que resumem muita coisa indefinível e que está em torno da gente, uma espécie de humor de almas penadas.
Vejam como Nilto consegue fundir esquemas alegóricos, míticos, com a miséria da classe média brasileira na terrível festinha de aniversário onde se trombam tantos desejos e tantas falas, em “O sétimo aniversário de Branca de Neve”. Como foi que acabou Lilith, a mítica deusa do Mal? Como pederasta, com esse nome de guerra, na noite paulistana. Os mitos, pelo viés do humor de Nilto, se abrasileiram e degeneram. São talvez menos engraçados que desesperadores, sua comédia é a do aviltamento, da avacalhação, coisa que transparece nos nomes absurdos escolhidos pelo escritor. Uma pequena coleção de seus onomásticos desvendaria já um autor muito peculiar.
Curioso, esse inferno de gentalha brasileira que conflui com mitos. Esse delegado Arnóbio de Barros, que cuida de sua pistola e a alisa como alisa o bigodinho, o que teme de fato ao temer um certo bandido? Ter sua macheza julgada pela mulher. Confiram em “Para quê esses olhos arregalados?” E confiram em “A mancha na parede” o desespero de um certo monge, dilacerado entre seus desejos bem humanos e seu idealismo religioso inviável. Onanista e irmão incestuoso, como sofre com o que imagina! O ar se povoa de coisas, numa espécie de limbo psicótico compartilhado por outros monges.
Lamento que a edição deste “A leste da morte”, de Nilto Maciel, esteja cheia de errinhos de revisão e tenha lá os seus tropeços. Nilto Maciel, como muitos autores que lutam para publicar sua obra com independência, sem concessões, não pode senão oferecer edições que, claro, poderiam ser muito melhores do ponto de vista gráfico. Mas a capa é muito apropriada, com um relógio afundado em preto & branco de sombras de filme expressionista. E a prosa de Nilto, sempre surpreendente, vale o esforço de adquirir o livro, escrevendo para o próprio autor. Nilto também edita uma revista, “Literatura”, e colabora em sites literários, como o “Cronópios”, onde seus contos surpreendentes têm sido publicados.
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