Quando desapareceu das ruas (e seu passo pesado e cadenciado de autômato deixou de ser medido com os olhos até dos mais velhos), a criançada nem percebeu, mas já brincava mais sossegada. Recolheram-no as autoridades da nova segurança, psiquiatras, algum padre caridoso, damas unidas da beneficência.
O passo medido, cronometrado do velho Vulpino costumava fazer mexerem-se milimetricamente as pupilas de todos – parentes de desaparecidos, gerentes bancários, mocinhas caseiras. O mundo inteiro da cidade se hipnotizava por onde aquele homem calado passava, pedra a pedra pisada e repisada.
Uns achavam-no soberbo em sua musculatura de touro, e berravam por dentro. De noite, em sonhos sangrentos, choravam. Cada banana esmagada ao pisar de Vulpino virava pasta para o escorregão de vacas, bois e bezerros. Vaiavam-nos seus vizinhos, risonhos.
Muitos comparavam suas pernas grossas e seu calção preto a craques mitológicos de seleções e times imbatíveis. Mais adiante, no entanto, todos, ao mesmo tempo, cuspiam e escarravam recordações de copas, campeonatos e vitórias. E brigavam como nas eras de brigas.
Havia quem pensasse em vestir camiseta qualquer, de portuário, carregador de fardos, como aquela de Vulpino. Mas pensava duas vezes e não saía da beira da fantasia. O touro mudo podia se ofender. Perceber ironias, heresias no imitador. E acordar, enfurecer-se.
O nome Vulpino seria obra de intelectuais ou de seus pais. Dele mesmo ou do folclore. Não escondia qualquer razão e tanto podia ter sido Getulino como Mussolino. Porém, os mais medrosos viviam de olho no latim, às escondidas.
O pobre homem, no entanto, não fazia mal a ninguém. Não espancava cachorros, não olhava para crianças, não falava a desconhecidos. E até um dia se disse incompreendido, desprezado, esquecido, apesar de tudo o que fizera, a vida inteira dedicada ao trabalho. Assim mesmo, sentia-se bem e realizado. Daí seu passo cadenciado, seu silêncio, seu orgulho.
Nunca contou um só capítulo de sua epopéia, porém os mortos, se pudessem falar ou escrever, teriam incontáveis histórias para atormentá-lo.
Esses mortos viveram instantes terríveis nas mãos de Vulpino. Seus punhos de aço, escondidos por grossas e invejadas luvas, quebraram ossos como se quebram ovos, sangraram peitos como se sangram porcos, fizeram gemer por noites e dias as vozes de muitos presos.
Tudo isso, porém, é apenas passado. E nem os mais velhos se lembram dos tempos áureos de Vulpino.
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