Sonhou João Cordeiro que subia aos céus, no bojo de uma nave estranha, tripulada por seres esquisitos.
Contou o sonho primeiro a sua mulher. Levaram aquilo muito a sério e durante toda a manhã engendraram novas teorias, que à tarde deixaram seus ouvintes em estado de graça.
A sabedoria de João assentava-se em Os fundamentos da vida, de um tal Krishnaradha, edição apócrifa do Rigveda, traduzida do francês para o português pelo carioca Sidarta Hastinapura. E também em Sodoma e os deuses, de Jack Morton, e Os extraterrestres, de Teddy Young.
Armado de tão maravilhosas armas, levava a vida a combater os leitores de porcarias e inutilidades, como Homero, Camões, Machado, Graciliano.
Os materialistas, coitados, mereciam dele as mais ferinas farpas, por voltarem as costas à vida, à energia cósmica, à realidade impalpável.
Sua sábia boca enchia-se de espuma diante de bebedores de cerveja, fumantes, frequentadores de motéis, revolucionários, admiradores de Lampião, Pelé e Carlitos.
No seu sonho privilegiado, acompanhado apenas dos navegantes do infinito, olhava para a Terra, aquela minúscula bolinha azul, e ria dos bichos humanos, salvo da catástrofe.
A palavra jorrava de seus olhos feito chispas incendiárias. Onde permanecesse por mais de um discurso, deixava plantado o vírus de sua ciência.
— Só existe uma verdade e esta eu a sei. Ela está nas palavras dos seres, não destes imbecis chamados filósofos, mas daqueles que nunca aprenderam nada, porque já trouxeram consigo todas as explicações.
Se alguém se interessava por suas pregações, não mais parava de falar, a citar Krishnaradha a três por dois.
Parecia viver o sonho: liberto da mentira da Terra, a navegar no rumo da Verdade, passageiro da Nave da Vida.
No trabalho contava com alguns ouvintes e uns poucos adversários. Aos primeiros dedicava uma ou duas horas por dia e aos outros chamava de vermes, bichos e cadáveres.
Se falavam de salários, carestia, injustiça, irritava-se com tanta mesquinhez. A vida vibrava dentro de cada um, lá fora, na selva, na água, no ar.
— A realidade está além de tudo isto, porque antes da roupa que vestimos, do livro que vocês lêem, das preocupações que vocês têm, já a vida existia.
Lembrava-se bem: a espaçonave de seu sonho tinha formas variadas — achatada, pontiaguda, circular — e os tripulantes não falavam, comunicavam-se com ele por meio de sinais, gestos, cores, sentimentos materializados.
Conhecia pessoalmente o mestre Krishnaradha, que vivia na Suíça, ocupado apenas com os ensinamentos da vida, em conferências diárias.
— Quantos seres existem entre nós?
— Dez, cem, milhares. Eles estão por aí, vivendo, aguardando o momento da Viagem.
A ciência de João ia além dos livros indianos, da sabedoria antiga e eterna dos seres como Cristo e Krishnaradha.
— Os homens, como os outros animais, nasceram de sementes lançadas à Terra por seres superiores, habitantes de outros mundos.
Os extraterrestres podiam apresentar formas humanas. No sonho, por exemplo, os tripulantes da nave até falavam português e vestiam-se como lavradores.
— De longe percebi tudo e nem me espantei quando perguntaram se eu já queria partir.
A reputação de João variava de pessoa para pessoa: sábio, sabido, doido, besta. Para sua mulher talvez chegasse a santo.
Apregoava o fim da raça humana, por se ter distanciado da vida, dos objetivos do Criador, e ao mesmo tempo abria baterias contra postemas como Hitler.
— A catástrofe não tarda — bradava.
— A guerra? — perguntavam, espantados, seus ouvintes.
– Ela e tudo: maremotos, furacões, terremotos, incêndios, inundações. E dela só se salvarão os seres, porque vocês, a grande maioria, não são seres, são bichos.
No sonho, deixava a Terra, essa morada podre de vermes, e alcançava a dimensão dos deuses.
Não viajou em vida, porém. Morreu recentemente, após ingerir um litro de inseticida.
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