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quarta-feira, 18 de outubro de 2006

O prazer de ler Nilto Maciel (Nicodemos Sena)




“Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente. Das visões que me perseguiam naquelas noites comprimidas umas sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem calafrios”, assim o escritor alagoano Graciliano Ramos começa o magistral romance Angústia, que conta à história de uma personagem miserável, vivendo numa das cidades nordestinas e vítima de todas aquelas desgraças circunstanciais. Graciliano costuma ser lembrado como o autor de Vidas secas e São Bernardo, livros que retratam a amargurada vida rural do povo nordestino, mas é Angústia a sua melhor obra. Nesse livro, ainda é o meio agreste que serve de pano de fundo para a narrativa, mas o drama se desloca do espaço social para o psicológico, onde é exposto o conflito íntimo do personagem-narrador Luís da Silva, humilde funcionário de repartição, a quem as dívidas e um ciúme doentio empurram para o crime.

Depois de Machado de Assis, esse romance de Graciliano é, na minha opinião, o mais profundo que surgiu na literatura brasileira, só encontrando paralelo em Os Ratos, do gaúcho Dionélio Machado. Em Angústia, Graciliano faz o drama interior das personagens transbordar o meio acanhado em que suas vidas se debatem. Com seu estilo despojado, preciso e correto, esse grande escritor fez escola, mas poucos seguidores souberam recriar, em linguagem sólida, o ambiente sombrio de Angústia, onde realidade, sonho e pesadelo se misturam.

No livro de contos Pescoço de Girafa na Poeira (edição Bárbara Bela, l999, vencedor do lº lugar na categoria conto da Bolsa Brasília de Produção Literária, l998, da Fundação Cultural do Distrito Federal), o também nordestino Nilto Maciel mantém viva a tradição narrativa iniciada por Graciliano Ramos em Angústia, pela qual o conflito humano gerado no meio físico e social acaba desaguando na psique das personagens, na sua alma. Embora não se trate de narrativa tipicamente onírica, há nela muita introspecção, como no conto “Reportagem”, do qual transcrevo o seguinte trecho: “Acordou, abriu os olhos. O sol já devia clarear tudo. Pôs-se a relembrar um sonho. Levantava-se, dirigia-se ao quintal. Onde andavam o galo e as galinhas? Lavava o rosto numa pia”. Nilto Maciel sabe criar tensão dramática na mesmice do cotidiano, como, por exemplo, no conto “As Ceias”, no qual a tensão é conseguida com a técnica do contraponto, que, ao mesmo tempo, adensa, encurta e mantém acesa a expectativa ao propor um enigma.

Embora inserido numa tradição, Nilto Maciel não é mero imitador. Seu estilo, de um verdadeiro criador, apresenta novidades que só a vivificam (pois o que pode matar uma tradição é a falta de avanços). Partindo do espaço social típico, o autor não se perde no pitoresco das situações. O enfoque é “realista” apenas na aparência, pois ao mistério que a vida representa é trazida a “certeza” das páginas mortas dos compêndios. A sua literatura, prenhe de vida, não desdenha da erudição, mas esta é destilada sutilmente, sem pedantismo nem invencionices que tantas vezes têm estragado o que poderia resultar em boa literatura. Há um Borges agreste em Nilto Maciel. “O que na aparência é simples relato, um conto, traz implícita a descoberta do Ser embutido do sujeito da oração e na linguagem”, bem observou Foed Castro Chama (“O Escritor”, Jornal da União Brasileira de Escritores, nº 92, setembro, 2000). O leitor encontra um ótimo exemplo disso no conto “A Pálida Visitante”.

Fica claro que Nilto Maciel, quando escreve, tenta ser fiel ao sonho e não às circunstâncias. Claro que suas estórias estão repletas de circunstâncias, mas são contadas com uma boa dose de inverdade. Pois que graça teria contar uma história como realmente ela aconteceu? O escritor de ficção não deve ter pretensão alguma à verdade, que não pertence ao universo da Literatura, mas da Vida. As coisas, ainda que insignificantes, devem ser mudadas, sob pena de deixarmos de ser artistas, para nos tornarmos meros jornalistas ou historiadores, embora Tolstoi já nos tenha ensinado, em Guerra e Paz, que todo historiador acaba sendo tão imaginativo quanto os romancistas.

Os contos de Pescoço de Girafa na Poeira revelam um autor maduro, que conhece a sua meta e os caminhos para chegar até ela. Sua frase é curta, mas rica em significado. Tanto o discurso direto quanto o discurso indireto confluem ao ponto almejado: O pensamento potencializado. Nilto Maciel não escreve pensando no leitor (este personagem imaginário). Não parece também pensar em si mesmo (pois o autor acaba sendo tão imaginário quanto o leitor). Ele, certamente, só pensa naquilo que tenta transmitir e disso não se afasta. Parece já ter passado daquela fase em que o escritor quer dizer tudo e só consegue ser confuso; já descobriu que, em vez de achar que pode encontrar a palavra exata para cada situação, ou a mais surpreendente metáfora, há mais eficiência na alusão, respeitando os direitos do leitor de “escrever” o seu próprio texto. Nós que um dia nos iludimos com caminhos largos e aparentemente seguros na Literatura, acabamos aprendendo à custa dos erros, que só os caminhos estreitos e espinhosos conduzem ao entendimento deste universo onde giramos que nem loucos. Nilto Maciel, autor de já ampla e importante obra, que vai do conto ao romance, publicados em esperanto, espanhol, italiano e francês, é, sem dúvida, um mestre da nossa literatura de ficção, que merece ser lido por todos os brasileiros.

(Jornal “O Estado do Tapajós”, Santarém, Pará, 5/9/2002)
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