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domingo, 3 de dezembro de 2006

Ficção e facção no romance de Nilto Maciel (Celestino Sachet)



Ao esconder informações mais detalhadas sobre sua obra, nas rápidas biografias que acompanham cada um de seus nove livros, Nilto Maciel parece proclamar tímida desconfiança na força da literatura ficcional que vem produzindo ao longo destes anos, que plantam uma presença de alta ponta no conto e no romance contemporâneo, embora a Crítica teime em esconder-se nos brilhos do Grande Centro ou do exuberante Seminário Internacional: Itinerário, contos, 1974; As Insolentes Patas do Cão, contos, 1991; Os Guerreiros de Monte-mor, romance, 1988; Tempos de Mula Preta, contos, 1981; A Guerra da Donzela, romance, 1982; Punhalzinho Cravado de Ódio, contos, 1986; Estaca Zero, romance 1987; O Cabra que Virou Bode, romance 1991; Os Varões de Palma, romance 1993.

Contactos apenas recentes e só com uma parte da obra do escritor do Ceará, radicado em Brasília, impossibilitam ao analista uma leitura sistematizante da ficção e da facção do texto de Nilto Maciel, tarefa, em parte, já realizada por Sânzio de Azevedo ao analisar-lhe a estrutura e a tessitura do conto (Literatura, 4, 1993, p.42-46).

Uma viagem por três romances – preferiria dizer “novelas” e, com isto, aprofundar o sentido da narratividade de cada um deles – uma análise de três curtas estórias – A Guerra da Donzela, O Cabra que Virou Bode e Estaca Zero, escritas ao longo de uma década e sob o impacto do desenvolvimento urbano de um ficcionista marcado pela Nordestinidade – apontam para uma direção fortemente original na Literatura Brasileira Contemporânea: o Maravilhoso do Sertão que se desmaravilha, imerso na guerra do real urbano, onde o bom Mito do Passado se arrebenta, carcomido pelo péssimo Rito-da-Passagem.

Em A Guerra da Donzela Nilto Maciel, o descendente de Antônio Conselheiro/Guerra de Canudos e, agora, sobrevivente do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, Nilto Maciel Brasília, tece um drama e uma trama que rompem as fronteiras mágicas dos homens e das mulheres de Palma, a pequena comarca do Sertão, para se instalarem nas profundezas da história da alma humana. Em doze capítulos – doze meses do ano na circularidade do Cronos e um “Primórdio”, o Gênesis – e no rapto de uma donzela, reescrevem-se as correrias do bando de Lampião, as viagens dos cruzados no resgate do Santo Sepulcro, as aventuras de Ulisses, com Homero transformado no Sombra a narrar estórias das profundezas dos infernos (cap.10).

E nem faltam à narrativa, à facção da ficção, o gosto e o cheiro da epopéia de seu antecessor: “Palma acordou alarmada pela notícia ruim de que uma moça tinha sido raptada durante a noite. Como pé-de-vento, mal o povo tomava café com pão, a nova já corria a cidade de ponta a ponta. E subia e descia as ruas (...) cada vez mais alarmante e misteriosa”(p.14).

O Cabra que Virou Bode mete-se, de novo, em Palma, retoma o mesmo drama da mesma tragédia de todas as almas: Raimundo Valente descobre o inesperado de todos os maridos: Rosa, a mulher e o primo safado, Zé Bugre, andaram passeando pela cama do casal! “Os gritos de Raimundo Valente chegaram aos mais distantes ouvidos. Os bichos se alvoroçaram e se puseram a correr pelo terreiro, pelo mato. Parecia dia de incêndio ou prenúncio de tempestade” (p.4).

Soadas as trombetas de desonra duplamente familiar, a caçada se instala e se vai maravilhando no emaranhado de um sedutor transformado em bode a tecer, em frangalhos, os valores éticos, políticos e religiosos de Chico Pavão, Zeca Rucinho, Pedro Pontaria, Tabacão (a Sociedade); padre Divino (a Igreja); tenente Benévolo (o Estado).

A tessitura do romance convive com o sagrado quando “Gólgota”, “Inquisição”, “Excomunhão”, “Artes do Capeta”, “Um Santo Rapaz” são títulos de capítulo; com o profano-penal mais parecendo peça de um processo, com os títulos “Sindicância”, “A justiça de Talião”, “Penúltima instância” e “Prisão de suspeitos”; com a literatura de cordel: “ Batalha do bode Ensinado “; “Batalha do bode Velho”; “ Batalha do bode Casto”, e “ Batalha do bode Cheiroso”; “Epílogo”, os cinco capítulos do fim.

Com a Guerra da Donzela e O Cabra que Virou Bode Nilto Maciel leva-nos a descobrir que a “literatura-de-cordel”, desenraizada na Urbs, pode continuar com alma e corpo do Sertão, nas cores e nas poéticas da prosa, sem perder a força da voz cantada na viola e nos dedos.

É “canto” o que abre o romance e quem lhe fermenta as 69 páginas: “Certa manhã, dois cavaleiros conversavam. E os cavalos trotavam. O sol desenhava no chão umas figuras esquisitas. Nem pareciam imagens de cavalos montados. Talvez dragões. Ou fantasmas”. É prosa, mas é verso. Basta ter ouvidos e imaginações para ver e sentir as rimas que saltam nos compassos dos cavalos que se misturam nos mistérios e que se alongam pelo chão , a carregarem o tema pelo romance afora.

Estaca Zero vai, aparentemente, em outra direção: de um tema banal e freqüente em nossas colunas da imprensa diária – o problema dos sem-terra urbanos, o Autor constrói um texto, inovador em múltiplas direções, situado entre o grau zero da escritura e o grau mil da aventura, E, com ele, Nilto Maciel consegue introduzir na Literatura Brasileira o “romance da terra urbana”. Uma direção de alteridade se arma em cada trama e em cada frase da narração-narrativa; aqui, é na identificação dos personagens: Napoleão, Cesário, Josefina, Augusto; ali, é na estrutura narrativa que monta e desmonta o próprio modo de narrar: relatório? documento? colóquio? Visão?; mais adiante, é a vez da musicalidade da frase: “varre-varre da minha viciosa vida”, p. 14; “rabiscavam edifícios, arranhavam céus”, p. 46; “pedreiras sem pedras, pedros, tiagos, mateus, lucas”; p.32; aqui mais perto, é no jogo-não-jogo das palavras e expressões que não jogam à toa: “Tudo continua como antes. Ele, vencedor e poderoso, limpo e gordo, no lugar de seus avós, vencedores e poderosos, limpos e gordos, e os pobres, vencidos e fracos, sujos e magros, no mesmo lugar de seus avós vencidos e fracos, sujos e magros, selvagens todos” p. 57; por todo o livro, é na trama de uma realidade-da-visão e uma visionaridade-do-real.

Todas as variáveis aqui apontadas, e outras tantas que cada leitor aponta, tornam o texto desses três romances de Nilto Maciel uma página de ficção que instaura um Novo em todos os componentes da arte de narrar.

(Revista Literatura n.º 8, Brasília, junho de 1995)
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