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terça-feira, 23 de janeiro de 2007

A rosa gótica (José Teles)



Alternativa não menos airosa é A Rosa Gótica, de Nilto Maciel. E permitam-mo, sem duelar encômios, fazer uma exegese sem compromisso para com a urdidura e tessitura da obra. O projeto gráfico se harmoniza com uma ortodoxia léxica e lógica, mimoseado por uma acústica violínica das orelhas de Fernando Py. O ritmo narrativo é de domínio pleno: imaginação, loucura e artefatos se misturam dando ao romance o tom caleidoscópico, numa imagética que navega até a foz do rio das infâncias. Nilto se precipita de alma a baixo, e sai atropelando seitas e conceitos, rezas e manias. A temática não se dispersa, varando todo o texto como ventania nos descampados. Depois, tudo é gozo e silêncio. Há, pois, uma intertextualidade, que se comprime e explode em síntese, para logo se transformar em catarse e mistério. O poeta se transforma em iconoclasta da ferrugem literária que oxida idéias e contextos. O fazer literário em A Rosa Gótica, aliás, assume foro universal, abre espaço novo na trama do imaginário e consolida o imagético como força comunicadora. E, através de espasmos dialéticos, deixa ao ledor a alternativa pitoresca de, também, romancear suas memórias, seus dramas, suas miragens: “Afinal, existe o romance? E quem seria o autor?” Nilto ainda abre e fecha o texto, caminhando, ora por frouxas veredas, ora por espaços liliputianos, consumindo todo o poder de síntese de sua criatividade. E viaja pelas sendas do inverossímil, procurando atalhos de cortesia. Tudo se complica, porém, quando o autor, em gargalhada mefistofélica, questiona: “E se tudo tiver sido impostura? E se os próprios críticos franceses forem invenção de Lamartine?”

E por aí o livro se consolida como vertente criadora do imaginário coletivo, à medida em que pluraliza dramas emergentes do cotidiano. A Rosa Gótica não se robustece em ornatos e louçanias, ao contrário, traz a síntese do inusitado, do realismo fantástico, iconografando receios, dramas e percalços. Nilto põe e dispõe toda sua coerência, sua incoerência, sua sensibilidade, num dizer rupestre, como que reverenciando a máxima shakesperiana: “Be faithful to thyself” (fiel a si mesmo).

O delírio vicariante do personagem Lamartine vai da longínqua Gótia à velha Palma – esse é o tamanho da criatividade do autor, e que confere à obra a ufania de ser lida numa só talagada. E num assomo de paixão mítica, Lamartine se transforma em máxima do saber universal, abjurando a mão estendida que a sociedade lha negou. Há, no personagem, uma revolta sub-reptícia, que denuncia a face ominosa da miséria e da loucura, onde nem sempre a fé sara as feridas que a cidadania esqueceu. Victor e Lamartine, inconscientemente, se debruçam no beiral de suas infâncias, insinuando que o atavismo, o passado e a vida foram elementos cáusticos na gênese de seus psicodramas. Seria Lamartine a psicopatia que habita a face burlesca do nosso delírio? O caos, pois, está ordenado aos ouvidos de quem wagneriano seja. Parece mesmo, meu caro Nilto, que os santos de sua aldeia, como nas nossas, têm uma dor padroeira devota do Poder.

A Rosa Gótica é, pois, um romance romanceando outro romance, onde o autor congela o tempo, leva e traz a narrativa com o engodo do prosaico estufado de emoções, e vai das entranhas dos godos e visigodos às ruelas descoloridas da Palma. E mais, em voleios de clandestinidade, Nilto subordina, filosoficamente, valores temporais à atemporalidade da literatura: “Não vou deixar nada de lado. Nem livros, nem as cartas, nem Lamartine (o romance), nem meu passado. Como deixar tudo isso de lado, se com ele preencho o vazio de minha vida?”. Aqui o autor abomina a barganha faustiana e lembra Diderot em sua monumental Encyclopédie: “A posteridade está para o filósofo assim como o outro mundo está para o religioso”.

Ao poeta basta apenas “ser a má consciência do seu tempo” – disse o francês Saint-John Perse. Nilto Maciel vai além, é ciência e consciência da nossa modernidade, quando denuncia: “Tente voar. Mas suba pouco, porque o chão é duro. Você morrerá como Ícaro”. O livro se depurou dos travos da polissemia, e traz, liquidificado, todo o cortejo do romance ultraísta. O romance, pois, está “ferido de mortal beleza”, no dizer de Mário Quintana.

A Rosa Gótica doravante medrou noutros jardins, madura, alheia, universal, porque, nenhum pensador controla o destino de suas idéias. E para nós, escritores, esta é a nossa riqueza. E, segundo Adam Smith, “a principal fruição da riqueza consiste em poder exibi-la”. Demo-la, pois, ao mundo! E por estarmos satisfeitos e de prazeres bastos, ouçamos bem: algumas estrelas descem nos despenhadeiros da noite, procurando a morte, para ser d’alva. Outras, em constelação, fazem caminho no céu. E Nilto Maciel, sozinho, por veredas e atalhos, faz caminho com sua Rosa Gótica.

(Diário do Nordeste, Fortaleza, CE, 21/3/2004, e rev. Literatura nº 27, Fortaleza, CE, jul/dez/2004)
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