José Maria teve um sonho horrível. E nem o contou a Maria. Ou devia contá-lo? Não havia almas gêmeas!
José não chegou a biólogo. Alias, nunca chegou à Universidade. Apesar disso, interessava-se sempre por generalidades e curiosidades científicas, especialmente as da área da biologia. Sem esquecer os traços biográficos de alguns cientistas. Assim, conhecia Mendel como poucos mendelianos ou mendelistas, austríacos ou biógrafos do botânico.
Zé-Maria, no entanto, não compreendia tudo das ciências biológicas. Talvez porque lesse excessivo número de livrinhos de divulgação pseudocientífica, do tipo Como fazer enxertos, Novos métodos de implante dentário ou Vida e morte dos parasitas.
Maria não se incomodava com as manias de seu marido. Antes, se sentia orgulhosa da inteligência dele. Se alguém falava de plantas ou animais, ela se lembrava logo dele. “Fale com Zé-Maria. Ele é doutor em buganvílias. Sabe tudo de gafanhotos”.
Se José voltava para casa agarrado a um livrinho, Maria corria aos braços dele. “E agora, sabichão?” Ele ria e mostrava a capa: Assim se produzem gêmeos.
Unidos há alguns anos, José e Maria não tinham filhos. A culpa disso, ele garantia, não vinha dele nem da biologia. Ela retrucava — nem de mim. E o agarrava, como se abraçasse um livrinho.
Confuso, José vasculhava dicionários e enciclopédias, em busca de uma ordem de conhecimentos. Dos gêmeos chegava à mitologia e desta às constelações. “Se tivéssemos filhos — sonhava — eles se chamariam Castor e Pólux”. Dengosa, Maria se amuava. Não, não gostava nada daqueles nomes. Preferia Cosme e Damião. E desfiava um rosário de nomes de santos e mártires do catolicismo.
Cansado de conversas sem termo, Zé-Maria corria atrás de seres minúsculos. Coçava a cabeça, como se aninhasse piolhos. Vinham-lhe à mente os tempos de rapaz. As diversões, as mulheres, as doenças venéreas, os chatos. Revirava os livros à cata de parasitos, anopluros, insetos. Maria conchegava-se dele novamente. “Está lendo o quê, sabichão?” Ele soltava os parasitos e corria atrás de outra curiosidade. Voltava à cadeira agarrado a monstros xifópagos.
José parecia um cidadão muito normal, trabalhador, dedicado ao lar, sem vícios. Não frequentava bares, não procurava mulheres, não fumava. Elogiavam-no na rua onde morava, na empresa onde trabalhava. Maria, no entanto, reclamava de tanta normalidade. “Vamos ao cinema?” Zé não gostava de cinemas nem de teatros nem de circos nem de zoológicos nem de igrejas. “É ateu?” Respondia com aulas de biologia. E à noite, cansado de anopluros, gêmeos e enxertos, visitava todos os canais da televisão, à cata de notícias bizarras, documentários científicos e filmes de horror. “Maria, vem ver isso”. O locutor falava do homem que havia introduzido no próprio ânus uma cenoura.
Noutras noites José se dedicava a rever desenhos e fotografias de seres anômalos: porcos com duas cabeças, hermafroditos, vegetais enxertados.
E ia para a cama, satisfeito. Maria, contudo, ainda o esperava. “E o porco?” Ele tentava dormir. “Coisas da natureza, mulher”. Ele ria: “Vem cá, meu porquinho de duas cabeças”.
Grunhiam por alguns instantes e depois caíam em sossego. No outro dia, ela contava sonhos sem fim. Falava de borboletas azuis, anjinhos e outros seres alados. Ele resmungava, ia trabalhar e voltava coberto de parasitas.
“Você nunca me conta os seus sonhos”, queixava-se Maria. E acolhia-se ao peito de Zé-Maria. “Não tenho sonhos, ou não me lembro deles”. Lembrava-se de monstros xifópagos e queria buscar livros na estante. Com a ponta do dedinho, ela descobria o umbigo dele. E ria. “Sossega, Maria José”. Ela sossegava, mas voltava aos sonhos. “Eu também sonho com borboletas e anjos”.
José sonhava outros sonhos. Aqui devorado por ele mesmo. Ali multiplicado por mil. Ontem unido a Maria. Quatro pernas, quatro braços, duas cabeças. Um monstro. Coisas da natureza.
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