Nilto Maciel é poeta. Poeta contista/romancista poeta. NAVEGADOR da nave e da ave (ave! eva!) da dor de ser poeta. Pastor ‘e’a’ dor do Sonho, nauta do Aflito, Sonha’dor da vida, cirandador da rodamarga do mundo... Poeta.
E escreve fácil e danado como que(m) ch’ora. Não cria nem recria palavras: elas são suas, criadas, e o servem como (ele) as quer. Bom piloto do mar da língua, navega seguro e forme, sem temer abrolhos. De suas plagas baturitezanas e seus cearás sertâneos trouxe o gosto da terra, o canto dos galos e a insofridez dos bodes. Nesse seu novo livro – Navegador – à Dor navega, funda e fundo. Talvez mais a que inventa do que a que sofre. E não é sempre assim, com a Pessoa do verdadeiro poeta?
É a Dor do (c)ego nos labirintos da Mágoangústia, longe do país da luz do (c) Eu... E não imita ninguém, é sempre o filho de sua Mãe. Um filho da mãe poeta, Navegante da noite em cruz ilhada. Na ronda do navegar incerto, sem velas nem bússola, sem rota nem porto, só ele e a poesia... (leia-se Solidão!) e a dor incurável de ser. Saio de seu Navegador mareado e marejado de dor. Lavado de sombras às vezes, quase sempre cambaleando do amaramargo.
Porque seus olhos (de agudo poeta) cegos-mudos-surdos só vislumbram, na Vega da Lira, a sua “própria imensidão de ser”. Aliás, o antológico soneto Destino (p. 85) diz bem do seu. Mário de Sá-Carneiro, José Régio, Augusto dos Anjos, Cesário Verde, Antero de Quental não o diriam melhor.
E esse Marujo da Tristeza voa, do “arranha-céu” “em vôo de circo”, porque A morte não tarda. Felizmente, porém, Cavalo negro que “toda noite / passeia pelos campos, pelas ruas, / em trote de cadência musical” (da decadência existencial), a-dor-mece-lhe “ao pé” da cama / e sonha toda a noite com a vida”...
Não, pareça embora, NM não é um Negador contumaz. Ele é (e o diz) “esse menino sem jeito” que navegante “procura a terra que sua Encantação (ainda) não descobre... Parece até que Sísifo (o Rolador da Pedra eterna dos infernos da Dor...) é o nume tutelar desse Marinhador da Tormenta/tormento. Mal ele namora o cume da montanha (o Porto da Paz), a pedra, sólida e fria, lhe rola das mãos para o olho do abismo, onde o Prometeu do Sonho deverá novamente ir buscá-la, na tediosa e desesperante Ânsia de culminar a trágica escalada (ou escapar do encapelado oceano) em que se debate.
O gado (boi) do NAVE GADO R "há muito é apenas ossada” e “agora rumina” seu “passado”. Navegador se abre com a palavra Ser e se fecha com Nada. Simbólico, não? Sobretudo metafísico, místico. E doloroso. No Balanço (94) o saldo é este: “Enquanto, farto e são, te deleitas / no vasto leito da mais-valia, / eu me prolongo nesse tormento / - operário de coisas inúteis”. Não haveria aí ponta de remorso, do só olhar narcísico, enquanto a Fome (fruto da mais-valia...) escangalha, esfarrapa e afoloza o povo?... O poeta sofre e quer “voar pro Nada, sim senhor”, mas quer de tudo um pouco, “mesmo da Dor, porém da dor do ser, da dor de não ficar e eternamente ser” (Pretensão, 95). Descrente/desconsolado, o vate compõe e põe com seu áspero Apocalipse um alvo (ou alvo nenhum) e conclui que “O amor é sem sentido, só palavra” e “A eternidade apodreceu no charco / e nenhuma ilusão sobreviveu / ao nosso apocalipse final” (96). Encerra-se com o Epitáfio (99), que sintetiza toda a mensagem do volume: “Aqui jaz quem sempre se sentiu / apenas um punhado de ossos / e carnes organizados, / que um dia será o repasto de seres menores. / E nada mais é, / a não ser lembrança. / Logo nada será, / nem mesmo um ex-ser, / a não ser parte do Nada”. Uma angustiosa e angustiante poesia, sufocantemente bela.
Se crítico literário fôssemos, desceríamos às análises estético/formais/conteudísticas dos poemas de o Navegador. Nestas simples considerações de leitor, resta-nos catar conchas coloridas que as águas poéticas de Nilto atiraram à praia, jóias que são achados ao longo dessa travessia tormentosa, em que o poeta se (ex)põe de alma nua, nada macio, mas quase cruel com seu existir. Creio que ele nunca leu (e fá-lo-á, um dia?) O Caminho da Felicidade de mestre Huberto Rohden... Se o fizer, quem sabe seu próximo livro de versos transmita alguma sombra de esperança, ainda que remota, de luz ao fim do túnel, de saída para o caos labirinto em que (todos!) nos enredamos, bodes “remoendo as próprias vísceras, / teimosas, presas aos dentes”... (Domador, 50).
A’notem a beleza de versos assim: (Ser poeta, 11) “É sentir todo o tempo a melindrosa / alma do riso em pranto mergulhada”; (Tempos, 19) “Tento sorrir, (...) / feito o menino que vivia em mim”; (Herança, 21 a 24) “...ver o tempo correr pelos dedos”; ...este cansaço de andar ao redor da macieza no sangue”; ...”um pente de chifre / com que pudesse (amaciar, digo) amansar a revolta”; ... “este semblante poético / que me faz não dizer nada”; ... "esta fúria contida / de tocaiar a fala e o grito”; ... "restou-me esta tristura de boi / a caminho do matadouro”; (Langor, 33) ... "e fazer versos como quem se vai.”; (Pintura abstrata, 34) ... “como pintor que pinta a própria dor”; (Queixa, 39) ... "bolha no espaço solta / e que vãmente espouca; ...Porém, quando cuidamos, tudo termina em nada,”; (Domador, 50) ... "De que adianta / escancarar a boca, / como porta de igreja, / se dentro a descrença / bate contra o teto, / desassossegado morcego?”; (Contemplação, 62) ... “Eu, o mais próximo de mim, / pouco me vejo, / tão insondável me sinto...”// “O meu abismo sou.”; (O Tempo, 63) ... “Hoje, que me acordei, / não sei como acordar.”; (Desabafo, 64) ... "mordia o pão do silêncio / que minha mãe me doava.”; (Prometeu / Terceiro galo, 65) “Não adianta voar sobre os muros de ti, / por mais que eles estejam / a te cercar o quintal.”; (Sombras, 68) .., “Mãe, me tira deste precipício”; (Indefinição, 69) ... “há no fim sombra-ômega”; (Vozes, 73) ... “Olho para o nada. Faz silêncio.”; (Canção sem rima, 75) ... “música que nunca acaba, / dúvida de poesia.”; (Os dias longos..., 76) ... “A dor existe densa, adunca, oblonga,”; (Alma, 79) ... “Nossa pequenina alma / não cabe sequer dentro da lágrima / ou do brilho dos olhos de quem ri.”; (A fala dos incendiados, 82) ... “- atalhei o grito / e o transformei em verso.”; (83) ... “à dor / que me plantaste à vida; ... sufoquei-a nas mãos / para me fazer poeta”.
Parece-nos que, nesse navegar de Navegador, transcreveríamos aqui os poemas da obra, quase todos. Para não ceder à tentação, basta-nos o prazer de mencionar ainda algumas peças dessa obra de arte, que mais de perto e forte nos tocaram, em nosso marinheirar afoito... Herança é um trabalho doído, pungente. Minha canção do exílio machuca... Escuridão nos anoturnece. Seixos nos rola e nos rala. Langor magoa. Queixa é mais do que uma. Banquete bate fundo. Aula de biologia (II) arrasa. Elegia da meia-idade tem algo de humor triste. Ilusões é um soneto porreta. Domador é dos mais belos. Vigília é o poeta insone, e só. Contemplação nos abisma em nós. Vingança é um desesperado ulular na noite. Canção sem rima é o ponto alto. Passagem não passa em branco. Destino - dissemo-lo antes - é um texto de alta poesia, um senhor soneto. E sem sons menores fica este Navegador, tão cheio de amargura, mas tão pleno de arte/beleza. Alma do poeta Nilto Maciel.
(Revista Literatura n.º 10, Brasília, junho de 1996)
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