(Para M. Yourcenar)
Quadro de Rubens)
Como não me deste a oportunidade de ler nos teus olhos tudo que disseste, querido Alexis, por medo de ser interrompido ou fraquejar a cada frase, também eu interponho certa distância entre a minha piedade e a tua pessoa; também eu me submeto à traição das palavras, embora, como tu, ache que só a música seja capaz de estabelecer o encadeamento entre os acordes. Foi ela o sinal mais claro. Deixaste-a (como) por mim e a ela voltaste por ti, quando afinal decidiste tua vida.
Antes de qualquer temor teu de eu pedir para ficares, digo-te que aceito teu adeus, porque agora vejo o rosto de todos os fantasmas anônimos que dormiram conosco durante esses anos e não os quero mais. Neste teu ato de imensa contrição, tua culpa, tua tão grande culpa, foi ter mentido e tanto sofrido por mentir, tanto teres sido infiel a ti mesmo. Já sabias, desde adolescente, que o teu sonho de um dia casar não constituía uma esperança, tu o considerava agradável na medida em acreditavas que os sonhos eram todos irrealizáveis. Contaste com a minha bondade generosa e trapaceaste meu futuro e o teu. Acredito que tentaste não me trair, achando que podias comandar teus atos, te abstiveste do teu próprio corpo, deixaste que os acontecimentos se interpusessem entre ti e a tua natureza já bem definida, mas tua alma, por fim, mergulhou mais profundamente na tua carne e entendeste que viver o mistério dos corpos, não quaisquer deles, mas teus iguais, era teu destino.
Tu bem disseste que, nos primeiros tempos, eu pareci quase feliz, notaste que passei a usar roupas escuras para te agradar, dissimulando minha beleza. Sabias que eu percebia algo errado, mas não queria falar. Tentávamos ficar juntos: saíamos demais, rezávamos, íamos à igreja, e já sabíamos, por certo, que juntos fugíamos de nós mesmos, para a rua, para a vida dos outros, esquecidos que havia um quarto à nossa espera, de passagem, frio e desguarnecido como os instantes de amor que me oferecias. Lembro o quanto eu ficava pálida, à espera da tua mão, disfarçando minha insônia e fingindo não perceber que tu também estavas acordado. Eu notava que ouvias o meu choro silencioso e fingias dormir porque nada podias fazer. Mas eu não sabia que nada podias fazer e me sentia desprotegida. Éramos dois doentes nos apoiando um no outro, aproximados pelo medo. Tentamos. Viajamos, Viena, Voroíno, Viena, verão, outono, as estações determinando nosso estado de espírito. Tudo pretexto para a mornidão do nosso leito. Não era mesmo o lugar o problema, nem a estação.
Depois da tua parca alegria com a notícia do filho que eu carregava no ventre, quis ainda crer que, ao trazer-lhe à luz, em tua terra, em casa dos teus pais, como querias, seríamos uma família. Tua frieza se acentuava com minha gravidez, meu corpo deformado, mas, depois seríamos uma família e não me negarias outro rebento, cheguei a pensar. Enganei-me mais uma vez. Os olhos azuis de Daniel foram a única coisa tua, ele parecia ter vindo só para mim. Sua existência não nos reaproximou, passaste definitivamente a dormir em outro quarto, no teu quarto de adolescente.
Sem saber o motivo, eu imaginava respeito, depois vi o fim de tudo o que pensei ter sido amor e procurei seu começo na residência alemã dos Mainaus. Lembro que quando cheguei, naqueles últimos dias do mês de agosto, logo me disseste que sabia tudo a meu respeito: que eu era linda, rica e perfeita. Ri dos adjetivos, deves recordar. A princesa Catarina estava decidida a nos unir e antecipou meu retrato, demasiado belo, para que me admirasses pelas qualidades que julgava maiores. Não fez por mal. Vi que tentaste resistir, pretextando tua pobreza e a minha destoante fortuna, somente. Hoje dizes que não te me revelaste por medo de perder-me e que chegaste a pensar que eu seria tua única chance de salvação... quanto egoísmo Alexis! Eu toda embevecida por tua fragilidade, tua indecisão e tua delicadeza, tua pobreza até, sonhava-me dona dos teus 22 anos para sempre. Eu, uma mulher; tu, um homem... A princesa e o príncipe de Mainaus quiseram tudo para nós dois, e noivamos em Wand, casamo-nos logo depois na igrejinha da aldeia. Eu não me deixei desconfiar que era a primeira mulher a entrar na tua vida, e atribuí aquela primeira noite desajeitada à tua postura austera de homem conservador. Como as outras.
Entendi só agora porque te refugiaste, depois que Daniel nasceu, no teu quarto de adolescente; foi lá que, aos dezesseis anos, te trancaste para avaliar o teu encontro aprazado com a beleza, querendo sentir remorso e vergonha de teres te dado a um igual. De volta ao mesmo quarto, encontraste naquele mesmo leito o passado e as reentrâncias do teu corpo marcadas no colchão, reunindo-te contigo mesmo. Não posso dizer que ali te perdi, porque não se pode perder aquilo que nunca se teve verdadeiramente.
Finalmente teu corpo te redime de ter uma alma, deixas de ser prisioneiro de instintos que não escolheste, mas aos quais decidiste te entregar. Quando vi que voltaste a tocar, logo que retornamos a Viena, compreendi que a música era uma confissão e um esclarecimento. Desadormeceste o som dos teclados e tua vida junto. Eu vi tudo ali, tudo o que eu já havia visto, mas não queria ver.
Que posso eu fazer agora: correr, rasgar-me, odiar-me, pedir-te perdão por ser mulher? Não, querido Alexis, não lamento tua partida, lamento teres ficado por tanto tempo... Teus dois anos de virtude comigo te desencantaram, tiraram tua cor. Não importa se te compreendo ou perdoo, aceitaste afinal não amar o diferente, preferiste, e não é tarde, o erro (se é erro) à negação de ti mesmo, que seria o início da demência. Finalmente entendeste que a moral em que fundaste teus princípios falsificou-te, esmagou-te. Não sou generosa nem boa como dizes, apenas nada posso fazer contra tua natureza. Bem que eu quis, mas sabes que foi inútil: Quod a natura inest, semper inest!.
Mônica
Viena, 19....
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