(Descartes)
O capítulo mais soberbo de Sonhos Ilustres, de Domenico Moravia, talvez seja aquele dedicado ao filósofo Descartes.
O autor nem sempre informa onde teria colhido o material para a elaboração de sua interessante e volumosa obra. Porém são os livros de memória a fonte principal de sua pesquisa. Não no caso de René Descartes.
Estranhamente, Moravia duvida da autenticidade do sonho cartesiano inserido e analisado em seu livro. Teria sido produto dos dons de ficcionista do pensador francês.
Para reforçar sua tese, o escritor noticia a existência de um romance deixado por Descartes. Inacabado embora, teria a mesma importância do Dom Quixote. Um exagero, certamente.
O livro de Moravia tem causado muita discussão. Chamam-no até de embusteiro, apesar da grandeza de Sonhos Ilustres.
Na verdade, é crença generalizada que o polêmico italiano inventou o tal sonho de Descartes. Se não, subtraiu a “história” das mãos de outro “embusteiro”.
Porém a história da “criação” do sonho deixa de ter qualquer importância diante dele mesmo.
Resumidamente, é ele assim:
Descartes e outra pessoa conversavam. Ele falava, ela ouvia. Um aposento cheio de luzes e brilhos. Parecia um salão de palácio.
Quando a outra pessoa falou, o filósofo compreendeu finalmente tudo: conversava com a jovem rainha Cristina. A filha de Gustavo Adolfo, o falecido rei da Suécia.
Além deles, não havia mais ninguém no salão. A não ser as quase vivas figuras dos quadros colados às paredes. Maravilhas de Botticelli, Rembrandt, Rubens e outros.
Recordava Descartes episódios de sua infância. A casa onde nascera, os pais, Touraine. Sim, apesar de conhecer quase toda Europa, não conseguia esquecer Touraine.
A rainha ria. Seu riso, porém, era de deboche. Ora, Descartes só podia estar fantasiando. Deixasse daquilo. Mentir não ficava bem para um filósofo. Ela sabia perfeitamente nunca ter ele deixado a França. Nem Touraine.
Nesse ponto da narração, Domenico Moravia discorre sobre a Suécia dos séculos passados, esboça um retrato político e intelectual de Cristina e se refere à amizade dela com Descartes.
No sonho, o francês, aborrecido, punha-se a passear pelo salão. As palavras reais o feriam e contrariavam. Devia ou não devia reafirmar que conhecia quase toda Europa? Talvez fosse mais cauteloso mudar de assunto. Sim, a rainha merecia seu respeito, sua amizade.
Acalmado, voltava ao sofá. Aquelas luzes o enfadavam. E a outra pessoa por que se calara? Buscava-a com os olhos. A pessoa continuava no mesmo lugar. Olhava com atenção para ela. Tratava-se, então, de Richelieu.
Explica Moravia não ter havido a transformação de uma personagem em outra. Igualmente não teria ocorrido a substituição física da rainha pelo cardeal. Na verdade, é como se Descartes estivesse sempre a conversar com Richelieu.
De fato, a conversa continuava a mesma de antes. Reatava-se. O outro reafirmava nunca ter Descartes saído de Touraine. E ia mais além: vivera até aquele dia preso na casa de seus pais.
Para não dizer grosserias, o filósofo se punha a andar pelo salão. Talvez Botticelli o acalmasse.
Ora, lembrava-se muito bem das longas viagens pela Europa. Não podia esquecer os anos de estudos no colégio de La Flèche.
Como se ouvisse seus pensamentos, Richelieu o chamava de mentiroso. Jamais estudara com os jesuítas. Tudo invencionice. Além do mais, não sabia nada. Um falso pensador.
Disposto a mudar a opinião de seu interlocutor, René Descartes voltava ao sofá. E dava com a presença de Galileu. E era como se estivesse desde o início do sonho a conversar com este. No entanto, nem parecia o amigo de antes. Como ousava duvidar de sua sabedoria? Toda Europa já conhecia suas obras. Ou não lera ainda nada de sua autoria? Buscaria os livros.
Galileu ria, debochava de René. Não acreditava numa só palavra dele. Nunca escrevera nada. Nem sequer cartinhas familiares.
Enfurecido, Descartes corria a uma estante, arrebatava alguns livros e os jogava aos pés do outro. Eram tratados de sua autoria, escritos e publicados em latim.
Ria novamente Galileu. Aqueles livros não traziam nenhuma letra. Tudo em branco. Simples papéis.
Do meio do salão, Descartes fitava Francis Bacon, e não mais Galileu Galilei.
Como das outras vezes, não percebera qualquer transformação dos personagens. Nem também a substituição de um por outro. Como se estivesse durante todo o sonho a dialogar com Bacon.
Olhos fitos no inglês, René Descartes batia no peito e dizia ser um grande filósofo. Além das obras monumentais já escritas, pretendia escrever outras. Uma delas sobre a alma.
Discursava, a passear pelo salão. De vez em quando olhava, ufano, para o outro. O mundo inteiro ainda dependeria de suas idéias.
Falava, quase aos gritos.
Em dado momento, porém, o outro também gritou. Descartes assustou-se, parou no meio do salão. Olhou. O rei Gustavo Adolfo parecia enfurecido.
Segundo Domenico Moravia, também neste momento Descartes não percebeu qualquer transformação ou substituição de personagem. Como se, desde a rainha Cristina, estivesse a falar com Gustavo Adolfo.
Ordenava o rei silêncio. Nenhum homem, por mais filósofo que fosse, poderia jactar-se de sabedoria.
René Descartes talvez nem homem fosse. Ou não passasse de uma figura, como as de Botticelli.
Calado e parado diante do rei, o filósofo ouvia insultos. Talvez Descartes nem existisse.
Enquanto Gustavo falava, ele tentava olhar para as luzes, os quadros colados às paredes. Porém não conseguia mover-se, sequer dar um passo.
Tentava falar, mas sua língua parecia presa aos dentes.
E pensar?
Nem isso conseguia mais.
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