Personagem menor de novelinha de costumes, nesta crônica quero me engrandecer. Talvez me redimir. Sou Tomé, jornalista, professor, filósofo, para alguns. Não, nada disso significa para muitos ou quase todos. Afinal, não é a mim que vou narrar. É novamente outro o herói. Este, porém, não vou expor à sanha da palavra, nem à dos vilões, nem à dos leitores. Antes, quero também redimi-lo.
Chamava-se O Tarado. Chamaram-no ainda O Sem-Vergonha, O Monstro, O Animal. Nunca se soube se teve nome de gente. Nem isso importava. Seria José Tarado da Silva, João Monstro dos Anzóis Pereira, Pedro Animal da Moita.
Só o vi uma vez. No seu último dia. Amarrado, conduziam-no, arrastavam-no os soldados. A captura se dera no mato, arredores de Palma. Onde vivia, solitário, assustado, sempre fugido. Talvez nunca tenha imaginado uma cidade, uma casa, qualquer construção humana.
Ensangüentado, ferido, inchado, olhava para tudo e para todos ao seu redor. Longo o caminho até a prisão. Tropeçava nas pedras toscas da rua, cambaleava, grunhia. E mais os beleguins lhe sapecavam pauladas e chutes.
A platéia seguia atrás e pelos lados, a gritar, urrar, vaiar, insultar. Moleques, donas-de-casa, comerciantes, um carnaval medonho.
Não o vi de perto. A multidão me apavorava. Se ia para a direita, uma laranja podre me afugentava. Se corria para a esquerda, uma pedra sem cor me escorraçava.
No entanto, pareceu-me ver a criatura chorando. Ou suava muito.
Lépido e curioso, consegui preservar uns raros instantâneos. O Tarado seminu, mal cobertas as vergonhas.
Disseram uns vestir-se de calção escuro e sujo. Outros, de tanga de palha ou couro de animal. Não pude chegar tão perto.
Descreveram-no assim: cabelos desgrenhados; olhos pretos e pequenos; venta achatada; boca e dentes grandes; queixo saliente; peito largo; braços compridos; mãos enormes; unhas crescidas; pés feito patas.
Suponho fosse homem das selvas. Um selvagem. Criatura meio humana, meio caprina. Espécie de fauno. Talvez remanescente do homem pré-colombiano, pré-diluviano. Indivíduo desgarrado da última tribo do homo sapiens neanderthalensis. Conjecturas, meras conjecturas.
A civilização industrial não tomou conhecimento dessa pessoa. A comunidade científica, os antropólogos, os paleontólogos não tiveram notícia desse “bicho”. Só o pouco e rude povo de Palma conheceu a estranha criatura. E talvez tenha eliminado o derradeiro exemplar do pitecantropo. O elo perdido.
A primeira notícia de sua existência logo se fez lenda. Andava pelos bosques dos arredores da cidade, a perseguir as incautas mulheres dos sítios. A surpreendê-las nuas nos riachos e nas cachoeiras. Escondido nas moitas, a espiar gestos de despudor.
Assustadas e temerosas, as mulheres armaram-se de cacetes e facões. Nenhuma ia mais aos rios sem a companhia de cachorros, filhos e irmãos. Formaram-se grupos. O das lavadeiras. O das banhistas. As mais precavidas abandonaram os banhos. A meninada chorou. Os saltos, os mergulhos, os peixinhos... Não, não abriram mão das brincadeiras nas águas. E as meninas impúberes, seios nascentes, voltaram a nadar. O Tarado, com certeza, só se interessava pelas moças.
No entanto, as lavadeiras ainda viam sombras escorregadias, olhinhos buliçosos entre as moitas, pegadas enormes no chão. Com certeza, o danado rondava também as pequenas ninfas. Urgia, pois, pegá-lo e matá-lo. Fosse quem fosse.
Os homens juravam castigos terríveis ao desconhecido. Surras, castrações e morte. O padre, o prefeito, o delegado, todas as autoridades acordaram: Deixassem a caçada por conta da polícia. E saíram os soldados por dias e noites mato a dentro.
Culpado ou inocente, capturaram o primeiro desconhecido que encontraram às margens do Potiú.
Forçado a confessar os crimes, o preso gemia e urrava no chão da delegacia. Não dizia uma só palavra do entendimento dos soldados.
O cadáver, puro sangue, levaram-no, às escuras, para os confins do cemitério. A leste da cidade. Onde ninguém tão cedo poria os pés. Nem os vivos nem os mortos.
E o enterraram numa cova aberta às pressas. A leste da morte.
(29/7/93)
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