Estive em Amsterdã durante três dias. Na bagagem levei um dicionário inglês-português, português-inglês. Em Paris procurei dicionário holandês-português, português-holandês. Não o encontrei e viajei preocupado. No entanto, ao me encontrar com Jacob Komrij, meu tradutor e futuro cicerone, voltei a sorrir. Mal nos conhecemos pessoalmente (durante um ano trocamos cartas e conversamos por telefone), ele me presenteou um pequeno livro, um dicionário holandês-português, português-holandês, de sua autoria. Porém avisou logo: eu não iria precisar do dicionário em nenhum momento. Ele estaria comigo durante os três dias de minha estada em seu país. E já havia programado todos os minutos de minha vida: livrarias, jornais, televisões, as igrejas góticas Oude Kerk e Nieuwe Kerk, a Casa de Rembrandt, o Museu Van Gogh, os canais da cidade etc. Ao nos despedirmos à noite, após o jantar no hotel, combinamos encontro na manhã seguinte, às dez horas. Iria ao hotel. Dormi logo, embora pensando naquela aventura. Ora, quem diria, conhecer quase toda a Europa, em dois meses. E ainda ver de perto alguns de meus livros em inglês, francês, espanhol e até holandês. Sentia-me o verdadeiro escritor satisfeito consigo mesmo. Não digo orgulhoso, vaidoso, que isto não tenho sentido quase nunca.
Ao acordar, olhei para o relógio: ainda não eram oito horas. Quando desci à recepção, passavam cinco minutos das nove. Decidi, então, ver a rua, as pessoas. Criei coragem e me pus a andar. Ninguém olhava para mim, como se eu fosse um holandês qualquer. Eu, porém, olhava para todos, quase todos, curioso, como se cada holandês fosse um ser de outro planeta. Até ver uma garota sentada num banco, lendo um livro. Parei a dez metros dela e fui seduzido por sua beleza. Vestia uma saia curta e deixava à mostra as pernas. Recostei-me a uma árvore, evitando ser atropelado pelos transeuntes. Não tirava os olhos da moça, que parecia alheia a tudo, inclusive aos meus olhos curiosos. Tentei ler o título do livro. Voltava o foco da visão para a pele clara das pernas da leitora. Lembrei-me de ter às mãos o dicionário de Jacob e resolvi me aproximar da jovem. Abri o dicionário e pedi permissão para me sentar ao seu lado. Abri o dicionário e me apresentei: brasileiro, escritor etc. Ela me mostrou o livro. Estupefato, percebi estar diante da primeira leitora de Corrida de Anões em terras batavas. Eu disse ser o autor daquele livro. Ela pareceu não acreditar em mim, sorriu, abriu novamente o volume e se pôs a olhar para minha foto na aba. A fotografia é de 1976, eu tinha 30 anos, usava cabelos longos e negros. Nisso, Jacob se aproximou de nós. No hotel indicaram o rumo que eu havia tomado. Apresentei-lhe Aadje. Ele lembrou de nosso compromisso e eu a convidei a passear conosco. Dirigimo-nos ao carro, parado diante do hotel, e saímos. Pedi a Jacob para servir de intérprete. Falei de mim, do Brasil, da literatura brasileira. Ele e ela falaram da Holanda, de Amsterdã, de escritores holandeses, especialmente Joost van den Vondel, Herman Gorter, Elizabeth Wolff-Bekker, Aadje Deken e outros. Ora, então eu estava conhecendo outra Aadje? Não, não escrevia nada. Apenas gostava de ler, estudava Literatura na Universidade. E o nome? Aadje Beck. Seria descendente do célebre aventureiro Matias Beck? Falei da invasão de Pernambuco e do Nordeste brasileiro pelos holandeses, em 1630. Maurício de Nassau, Johann Mauritius van Nassau-Siegen. A Companhia Neerlandesa das Índias Ocidentais. Lembrei o domínio dos holandeses no Ceará: o rio Marajaik; as minas de prata na serra de Itarema (Maranguape); o forte de Schoonenborch; Matias Beck, o “verdadeiro fundador” da cidade de Fortaleza, segundo Raimundo Girão. Beck e seus 298 comandados desembarcaram no Ceará em 6 de abril de 1649.
Cheio de coragem, convidei Aadje para jantarmos. A conversa teve início com Desidério Erasmo, O Elogio da Loucura, a Reforma, Lutero, católicos e protestantes. Passamos aos tempos de hoje, o mundo, as guerras, a política e a literatura. Meio embriagado, beijei a mão de Aadje. Ela sorriu. Jacob lembrou os compromissos do dia seguinte e se despediu. Perguntei à moça se desejaria conhecer o quarto onde me hospedava. Algumas horas depois, ainda acordados, pus-me a falar de minha viagem de volta. Ainda deveria conhecer Londres. Convidei-a a conhecer o Brasil, especialmente Fortaleza, a cidade fundada pelo seu ancestral Matias Beck. Ela parecia feliz. Se um dia tivesse um filho, dar-lhe-ia o nome de Matias.
Três meses após meu regresso ao Brasil, recebi um telefonema de Jacob Komrij: nossa amiga Aadje Beck acabava de falecer. E deixava um filho.
/////