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sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Caça e Caçador (Nilto Maciel)








Dias e dias seguidos Saul perseguiu com os olhos a pequena Raquel. Seguiu-lhe os passos pelas ruas. Quando se aproximava dela, havia sempre alguém por perto. Dava meia-volta e se metia na próxima rua transversal. No entanto, sabia onde ela morava. E quase todo dia se postava na esquina, olho na casa dela. Aparecia alguém à janela. Ele se zangava e se punha em retirada. Urgia apressar o bote. Talvez já o conhecessem naquela rua. Já reconhecia até o sorveteiro que empurrava um carrinho. Tanta sede, pensou em comprar um picolé. Não, o homem puxaria conversa, olharia para seu rosto.
Como um dia é da caça, outro do caçador, Saul finalmente conseguiu saciar o desejo. Horas depois a polícia saiu no encalço do assassino, a multidão aos gritos, armada de paus e pedras. Saul, contudo, andava longe do local do crime. E assim andou por longos anos.
Como um dia é da caça, outro do caçador, Saul terminou seus dias como animal pequeno nas garras de uma fera. Numa noite de bebedeira discutiu com outro homem, de nome ignorado. Saul não conseguiu se livrar do ataque e o outro desferiu nele diversas facadas. Antes de morrer, se disse arrependido do crime cometido contra a menina e sua alma voou até a presença de Deus. No mesmo instante a alminha de Raquel se aproximou do Supremo. Por que Saul se achava, se a estuprou e matou? Ora, pequena, ele se arrependeu de tudo. Além do mais, eu quis assim. Saul sorriu e caminhou para a menina, que tremeu e quis chorar. O Todo-Poderoso a tranquilizou. Não tivesse medo. Saul não lhe faria mal. “Aqui não há pecado; não há caça nem caçador”.
(14/2/2005)