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quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Na paranóia, a argúcia é o maior dos bens (Henrique Marques Samyn)



Dez anos atrás, a literatura brasileira recebia, pela primeira vez, a visita de Kid Skizofrenik, vulgo Capitão Poeira, vulgo Chiquinho – o anti-herói que partiu (aliás, fugido) de Pedra Ramada para o mundo, na (des)venturosa viagem que o levaria a descobrir, após inúmeras peripécias políticas, amorosas e literárias, que a verdadeira liberdade é a que se escreve com l minúsculo, “minúscula e concreta, composta de miudezas em geral, um armarinho enfim”. Agora, O equilibrista do arame farpado – que, nesse meio tempo, recebeu vários prêmios, dentre os quais um Jabuti – retorna às livrarias brasileiras, o que dá uma nova oportunidade para conhecer, ou revisitar, a atribulada história do “garoto esquizofrênico”, personagem-narrador (e um dos sete autores) do romance de Flávio Moreira da Costa.
O equilibrista do arame farpado ocupa uma posição singular na literatura brasileira contemporânea: por um lado, realiza uma explícita contestação da estrutura tradicional do romance – um “desmonte das convenções romanescas”, nas palavras de Elisalene Alves, que assina um dos estudos incluídos na nova edição; por outro lado, mantém um franco diálogo com a tradição, representada sobretudo pela grande obra machadiana Memórias póstumas de Brás Cubas. Na verdade, o próprio Brás Cubas faz-se presente no romance, assinando um “Prólogo à moda antiga (e fora de lugar)” – “possivelmente psicografado” – em que esclarece o tipo de relação que há entre Memórias póstumas... e O equilibrista do arame farpado: “parte-se daqui de onde Joaquim Maria Machado de Assis cogitava chegar”.Essa relação dialógica, anunciada já na dedicatória do romance – “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do cadáver de Joaquim Maria Machado de Assis dedicamos com saudosa lembrança este romançário pós-antigo” –, efetiva-se principalmente por duas vias. Em primeiro lugar, há as semelhanças entre o próprio Kid Skizofrenik e Brás Cubas: ambos têm uma visão de mundo marcada pelo cinismo e pelo sarcasmo; ambos, após profundas (e frustrantes) experiências amorosas em sua juventude, passam a relacionar-se com o sexo oposto de um modo conscientemente superficial; ambos levam a vida ao léu, seguindo seus próprios caprichos e vontades. Além disso, as ousadias formais de Memórias..., d'après Sterne, são recuperadas por Flávio Moreira da Costa com um sentido criativo que se mantém distante do mero pastiche. Duplamente orientado, portanto, para a tradição e para a contemporaneidade, O equilibrista do arame farpado constitui-se como um “romançário pós-antigo” na medida em que, embora preserve a centralidade de seu diálogo com a obra machadiana, trata efetivamente de registrar um momento histórico fundamental na contemporaneidade: a ditadura militar – pela qual aliás Kid Skizofrenik vê-se subitamente perseguido, à la Kafka: “Calma que o Brasil é nosso – ou não é mais. (...) Desafio, confronto: de um lado eu, Capitão Poeira com medo e, de outro, eles, a polícia e sua força. Não, nenhuma razão para ser preso mas vamos supor que, ainda assim, não acreditasse na possibilidade da minha prisão: era só ficar em casa esperando e eles então voltariam e... lá ia eu, devidamente ‘convocado’ e ‘guardado’”. Não obstante, essa perseguição acaba levando o autor-personagem-narrador ao surpreendente encontro com sua mãe, nas páginas finais do romance, acontecimento aliás revelador: é ali que descobrimos que o oblíquo destino de Kid Skizofrenik já estava, de certo modo, inscrito em seu nascimento, fruto de um enlace marcado pela interdição. Chiquinho, vulgo Capitão Poeira, vulgo Kid Skizofrenik, autor-personagem-narrador, opera sobretudo como uma alegoria. Sua condição desviante, sua incessante errância extrapolam o âmbito puramente romanesco, representando algo que guarda uma relação muito mais profunda com a identidade brasileira – especialmente se levarmos em conta o contexto histórico registrado em O equilibrista do arame farpado: em um ambiente de paranóia, a argúcia própria dos nômades pode revelar-se o mais valioso dos bens.

[publicado no Jornal do Brasil em 20.10.07]
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