Eles estão se desvairando, aos poucos. Somente eu permaneço lúcido. Vejo tudo nitidamente: paredes e tapumes, portas e janelas, chão e ar, poeira e insetos. Enludrados estão os muros por onde passeiam lagartixas e outros seres. Ouço tudo o que fala, guincha, ruge, chia. No entanto, não sei como anda o mundo lá fora. Anos e anos metido neste mosteiro. Haverá guerras ou as nações vivem em paz? O comunismo ateu terá tomado conta de tudo ou se esfiapou? E a Igreja terá se expandido mais e mais ou perdido rebanhos para novas seitas e o ateísmo? Como viverão meus pais e irmãos? Certamente alguns deles morreram. Não durariam para sempre. A mancha na parede parece se alargar dia a dia. Quem morreu aqui depois de minha chegada? O corpo de monge Heraldo estendido no caixão, lívido e grave, após um dia de orações sem fim – há muito tempo. De velhice. Não falava mais, não andava. Talvez ainda rezasse. Depois monge Onguinaldo, tão cheio de viço, corado, loquaz, risonho, brincalhão, que definhou, murchou, da noite para o dia. Outros e outros se foram, uns para muito longe, outros para o Céu. Introibo ad altare Dei. Ad Deum qui laetificat juventutem meam. Aquela mosca me encara, como se eu fosse estranho. Mas ontem ela esteve aqui, lambeu e lambuzou minha mão. Ou será filha da outra? Aqui não é lugar para insetos. Aqui vivem meus irmãos, cenobitas como eu. Uns muito velhos, outros nem tanto. Arnúbio fita os olhos em mim, com piedade, e foge pelas esquinas, a resmungar. Samuel ri à toa, observa o céu, persigna-se. Nos cantos vejo restos de biscoitos. E formiguinhas. Nazário passa horas debaixo da mangueira. Parece cochilar. Não temos nada a fazer, a não ser rezar. Se chovesse uma chuva muito forte, se os ventos prostrassem algumas árvores... Quem sabe desabelhássemos todos. Não consigo me lembrar mais das feições de minha irmã caçula. Às vezes vejo seus lábios na imagem de Santa Bárbara. À noite fito as estrelas. Pisco para elas, mando-lhes mensagens. Antes de vir para cá, numa tarde, minha irmãzinha tomava banho. Por descuido, entrei no banheiro. Ela se sobressaltou. Extasiei-me, queria fugir, mas não conseguia sair dali. Olhava para ela, o seu corpinho alvo. A menina se retraía, com medo. Eu me aproximei dela, passei a mão em sua cabecinha. Senti um arrepio e fugi. Fui para a rua, atordoado. Eu nunca tinha visto ninguém sem roupas. Ajoelhei-me numa igreja, confiteor Deo omnipotenti. Rezei durante horas, querendo tirar da cabeça a imagem da menina nua. Machuquei-me como pude. Fui ao médico, porque não alcançava a cura da ferida. Joguei-me contra paredes. Imaginei-me no inferno, a arder para sempre. O corpo se abrasava, doía. Quando voltei para casa, minha mãe me examinou com olhos de estranha ansiedade. Voltei-me para as paredes. Havia uma mancha à imagem e semelhança do semblante do demônio, olhos cravados em mim, com deleite. Agora a mancha na parede se esverdeou. Preciso falar com frei Angélico. Há dias não o vejo. Ouvi falarem de uma indisposição estomacal. Frei Domênico morreu de diarréia. O convento virou uma fossa insuportável. Ostende nobis Domine, misericordiam tuam. Ali vai Bernardo, a arrastar os chinelos, a sondar o ambiente, com medo de capetas. Sonha – contou-me, trêmulo, nervoso – com seres terríveis. Anda a espantar coisas com os dedos. O passarinho voa para os fundos da chácara. Diziam quinta, há muito tempo. Havia, ao fundo, grandes gaiolas. Os pássaros chanfalhavam o dia todo, num canto interminável. Por que não soltá-los? Aproximei-me da grade, eles se perturbaram, gritaram, desesperados. Para eles eu seria uma ameaça? Corri, tropecei numa pedra, caí. Quantas vezes tenho caído, quantas vezes me erguido. Mas sempre sujo. Minha alma se lavará algum dia? A qualquer momento serei chamado para o Eterno. Irei. Como não ir? E nunca voltarei. Como frei Domênico. Mas então estaremos limpos, longe das fossas. Ali vai outro demente, pobre frei Sinfrônio. Quer conversar comigo, mas nada temos a dizer. Benze-se e ri. “Deus esteja contigo”. Afasta-se devagar, a olhar de viés, como se temesse que eu o seguisse com os olhos. Mas não quero deitar minha atenção nele. À noite não tenho conseguido dormir logo. Passo horas a rezar. Uns roncam e penso que vão morrer sufocados. Amarro as mãos com a ponta do lençol. “Em tuas mãos entrego o meu espírito”. Se amanhecer morto, saberão que tentei me agarrar, para não ser levado por estes seres terríveis que comigo se defrontam a todo momento, zombam de mim, tomam conta de meus sonhos. Acordo sobressaltado, como se cães danados uivassem dentro de meus ouvidos. Preciso rezar mais, mais e mais. Sempre, até o último dia, o derradeiro instante nesta vida. “Cavalgava um querubim, e voou; sim, levado velozmente nas asas do ...”. O vento corta a copa das árvores e sibila. Andorinhas passeiam para cá e para lá, invisíveis, a zinzilular sem freio. Faz muito calor. O suor empapa minhas vestes. Eu quero frio, gelo e barulho. Os corredores são imensos e não levam a lugar nenhum. Há vultos atrás das colunas, das cortinas, espiam pelas janelas, fogem sorrateiramente para o mato, escondem-se de si mesmos. “Por que escondes a tua face e te esqueces da nossa miséria e da nossa opressão?” Sou lúcido como um filho de Deus. Nada invento. Meus irmãos, coitados, riem de nada e se desvairam sem controle. Passam horas sentados, ou a caminhar sem rumo, perdidos. Examinam as paredes, como se fossem seres, e falam com elas. Conversam com os próprios pés, os chinelos, as pedras. Falam de Deus para mim, como se eu fosse um intruso, um desconhecido. Cuidado, frei Jeremias. E se retiram sem despedida. Entram para seus claustros ou se escondem atrás de pilares. Reaparecem e me chamam de frei Domênico. Assusto-me e saio de esconso. Volto para a parede suja, vejo a mancha que cresce dia a dia. Aproximo-me dela e vislumbro o rosto de minha mãe, com o olhar misterioso e de repreensão. “O que você fazia dentro do banheiro, menino?” Corro sem freio, desembestado, medroso, e atiro-me na cama, a chorar baixinho, com vergonha de tudo, de meu corpo, de minha nudez, de meus pecados. Quero me afligir, me torturar, me sangrar, me purificar. Pater noster, qui es in cælis: sanctificetur nomen tuum... Como estará lá fora o mundo? Terá pegado fogo? Ninguém nos manda notícias. Não se sabe de nada, de ninguém, como se nenhum de nós tivesse pais e irmãos. A mancha na parede cresce. Ali vai outro pobre monge, a resmungar. Talvez encontre sua pedra e também caia. Eles não enxergam nada. Eu vejo tudo com nitidez.
Fortaleza, agosto de 2005./////