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domingo, 4 de novembro de 2007

Estrias da alma (Caio Porfírio Carneiro)

























Carnavalha (Ed. Bestiário, Porto Alegre, 2007), de Nilto Maciel, é uma desnorteante rosa-dos-ventos literária. Pouco vimos, na literatura brasileira atual, ou fora dela, criação ficcional assim. Não porque haja aqui uma originalidade, formal ou de conteúdo, até hoje despercebida e não excursionada por outros. Falta apenas, sem falsa ironia, aparecer um romance de ponta-cabeça. Mas chegaremos lá.
O que se dá de inusitado, neste escritor, e avulta no livro, é a notável amostragem ou montagem, impressionista e impressionante, de todo um universo, meio submerso e doído, de vidas, em particular ao nível da baixa classe média, em contraponto às alegorias emblemáticas das diversões carnavalescas. São os espelhos das pantomimas e os contra-espelhos das criaturas sem horizontes na mesmice do dia-a-dia.
O que sobressai e sensibiliza são as tomadas de cenas continuadas. Os grupos carnavalescos passam e das cadeiras nas calçadas e das cabeças nas janelas exsurgem um mundo de criaturas do povo que comentam o que vêem e quem vêem. O grotesco está nos foliões, mas o chapliniano está mais dentro das referidas criaturas, pela vida que levam sem maiores horizontes a alcançar e ambicionar.
Tudo sem denúncia social; tudo exatamente como os corsos dos “sujos” que perambulam pela cidade; tudo em meios-tons, esse diapasão literário que vai à alma de qualquer um; tudo aparentemente – sempre o aparente da boa ficção – corriqueiro e banal.
Aí onde o carro pega, com toda a sua força de impulsão, cadenciada de achados literários surpreendentes, nos simples comentários e fuxicos, tão comuns nos bairros diversos onde todos mais ou menos se conhecem. E o impacto mostra-se surpreendente nas simples descrições elípticas dessa gente que assiste ao desfile, comenta pouco, o essencial, e vemos, em lampejo cinematográfico, até a alma de cada uma das criaturas. E vem o mais pungente, no seu todo envolvente: a precariedade de tudo, no vendaval que entra pelos meandros das veredas sociais.
O autor insere, ao longo dos capítulos nominados, como num crescendo sinfônico, curtos minicontos ou crônicas ficcionadas, onde a alegoria e o fantástico atingem pontos inesperados de criações paralelas dentro do todo romanceado. São girândolas belamente visualizadas que marcam os contrapontos vívidos da criação. É que a vida caminha assim, com picos ilusórios de fantasias irrealizáveis. E o autor costura isto muito bem, aprofundando as raízes das vidas incolores.
Como Nilto Maciel capta bem esse mundo... Como traz a relevo, disfarçadamente, esse esmerilhar de vidas... Como se vale da riqueza dos detalhes... Como a linguagem é notavelmente apropriada e personalíssima... Como...
Outros comos poderiam se somar a estes, mas fiquemos em mais um: o livro é para ser lido continuadamente, de fio a pavio, eis que as sete partes que o compõem são faces de luz e sombra de um todo, porque ele desperta a curiosidade do leitor, como um filme em preto e branco, logo de saída. Mas como tudo gira tal uma roldana, abra o leitor o livro onde abri-lo que não o soltará, porque a empatia é imediata e se vê logo metido nessa onda que vai e que não pára.
A Carnavalha segue e voleia em envolvência ampla quando alcança patamar social melhor na capital federal e os jovens, nela e através dela, espelham bem como se comportam e vêem a vida nos dias de hoje, onde muitos valores estabelecidos ruem, perdem o fôlego e se exaurem.
O autor, numa aparente dispersão, faz jogo inverso e tudo vai na ciranda, sem apelação, até mesmo o sentido das frases e das palavras, na oitava parte do livro, que encerra, e o próprio fecho corre em brisa nas fragmentações de sílabas, de sons...
É o carnaval da Vida, observado em vários ângulos, onde, no último suspiro, tudo vai perecendo no “fim fino finos fins finis.”
Carnavalha são as estrias da alma neste mundo sem apelo.

São Paulo, 22/09/2007
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