Passavam os dias nas ruas. Há muito tempo no batente da Igreja do Patrocínio. Ponto bom. Sentavam-se junto à parede, estiravam as pernas e se preparavam para os primeiros pedidos. Esmolinha pelo amor de Deus, ajudinha para os ceguinhos. E levantavam as vasilhas amassadas, para facilitar o acolhimento das moedas e cédulas. Quando se sentiam sós, conversavam. Ela sempre recebia mais. Esse povo pensa que não sou cego? Contavam e recontavam as esmolas. Hoje o povo está miserável. Havia quem parasse para conversar com eles. Fazia perguntas de todos os tipos: se eram cegos de nascença, onde moravam, com quem viviam, por que não procuravam abrigos públicos? Passavam por eles homens e mulheres de todos os feitios: lentos, bêbados, pesados, perfumados, bem vestidos, suados, bonitos. Tropeçavam em seus pés e pediam desculpas. Fossem moedinhas ou cédulas de maior valor, agradeciam sempre: Deus lhe abençoe; Deus lhe dê em dobro; Deus lhe pague. Conheciam alguns transeuntes. O doutor já passou? Ainda é cedo. Voltavam para casa ao anoitecer, bolsos e bolsas repletos de dinheiros e presentes. Quem deu esta pulseira, Mundoca? Ela se zangava. Ia querer saber de tudo? Foi homem ou mulher? Tomasse cuidado com certos homens. Começavam dando presentinhos e terminavam querendo recompensas. Ora, ora. Fosse tomar banho de bica. Por que iria dar recompensa? Por acaso ela parecia alguma sirigaita que andasse se oferecendo? Amuavam-se por horas. Iam dormir brigados.
No outro dia, ele voltava a falar do homem bonito, de paletó, perfumado, que teimava em passar pela calçada, ficar parado, olhando para ela. Você acha ele bonito? Mundoca se irritava: Como ia saber, se não enxergava ninguém? Queria saber de uma coisa? A partir daquele dia, não pediria mais naquele lugar. Ia procurar outro ponto. Se fizesse aquilo, não voltasse mais para casa. Procurasse outro besta ou fosse viver com o macho bonito. Mundico, você acha que ele me quer, eu, uma pobre cega? Não sabia se ele a queria, mas que ela o deseja, disso tinha certeza. Viu-a suspirar de noite, cheia de dengues. Puta!
Todo dia contavam as esmolas. Sete mulheres, oito homens. Quase nada hoje. Uma miséria! E você? Seis homens, seis mulheres. Quanto você ganhou? Porém nem todo dia os homens e as mulheres da cidade se mostravam mesquinhos. Mais de vinte hoje, Mundico. Muitas vezes o esmolador lançava a moeda no rumo da vasilha e sumia. Quem foi, Mundoca? Nos primeiros tempos tentavam contar as pessoas que passavam diante deles: um, dois, três, cem, mil. Vamos parar no mil. Não, na terceira esmola. Tem muita gente neste mundo, Mundico. E aqui na cidade? Talvez cem mil. Muito mais. Um milhão? Sei lá o que é um milhão.
Ao meio-dia deixavam o batente e saíam à procura de restaurantes. Pediam sobras. À noitinha, pegavam o ônibus. Às vezes conseguiam lugares nos bancos. Quando se desorientavam, pediam ajuda de passageiros. Mas quase sempre sabiam onde se achavam. Depois do jantar contavam as esmolas. Quem deu a nota de dez? Um homem. E esses centavinhos?
O homem bonito tornou a incomodar Mundico. Por que você acha que ele é bonito, Mundoca? Será porque tem muito dinheiro, veste paletó e usa perfume caro? Você quer ele, Mundoca? E, na escuridão do casebre, o torvelinho das palavras se misturou aos gestos descontrolados e aos atos mais primitivos.
No dia seguinte e nos outros, Mundico voltou sozinho aos degraus da Igreja do Patrocínio, a contar moedas e cédulas e a dizer Deus lhe pague, Deus lhe proteja, Deus lhe dê em dobro.
Fortaleza, agosto de 2005. /////