“Conheci um Cristo
santo e crucificado
nas palavras dos evangelhos.
Perderam-mo
dentre as paredes daquele templo
em que rezei ateu.
Reencontrado, mais tarde
nas telas, com Scorsese,
ou nas páginas do Saramago,
humano e carnado,
este Cristo tão igual a mim
quase me convenceu.
A me provar do contrário
sempre houve esta cruz
e toda esta dor
estas carnes expostas
estes corpos exangues
e este arbítrio de morte”
(Viegas Fernandes da Costa, Itinerário)
Em 1991 o escritor português José Saramago apresentou ao público este que ainda é o seu livro mais polêmico: O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1). Um pouco antes, em 1988, em uma adaptação do livro A Última Tentação de Cristo, do grego Nikos Kazantizakis, o diretor Martin Scorsese produz o filme homônimo que, da mesma forma, põe em polvorosa a Igreja Católica. Afinal, tanto Scorsese, quanto Kazantizakis e Saramago, ousaram reler os evangelhos e reconhecer em Cristo “o humano e carnado” do nosso poema em epígrafe acima. Um Cristo sexuado, temeroso, que afronta Deus e que “quase me convenceu”. Ainda que diferentes, estes Cristos de Saramago e Scorsese dialogam entre si. Dialogam quando insistem na concepção carnal de Jesus, de uma Maria não virgem, de um Cristo a quem se é dado ver o mundo sem seu sacrifício, sem seu martírio na cruz (em Scorsese, no delírio de um Cristo crucificado que se imagina casado com Madalena e pai de família, em Saramago, no debate com Deus e o Diabo na barca estacionada em meio ao nevoeiro). Mas Saramago avança em sua transgressão quando intima o leitor a reconhecer um Deus egocêntrico, maquiavélico e cruel (“é preciso ser-se Deus para gostar tanto de sangue”) (p. 327), em detrimento de um diabo humanizado e imprescindível à obra divina; e quando estrutura seu texto ficcional com argumentos teológicos e filosóficos, escancarando inclusive a relação do cristianismo com a antiga religiosidade grega: “... eu tinha misturado a minha semente na semente de teu pai antes de seres concebido...”(p. 306) – disse Deus a Jesus. Nos Evangelhos, Deus fecunda a virgem Maria por meio do Espírito Santo. Em ambos os casos o divino fecunda a carne humana, como na antiga Grécia, onde os deuses desciam do Olimpo para se relacionar com os humanos, fazendo nascer os “heróis”, estes semi-deuses que nada mais eram que humanos virtuosos sob determinados aspectos. O Jesus que encontramos nos Evangelhos obedece a esta herança grega, tal qual o Jesus de Saramago, nascido do encontro do mortal e do imortal.
Rico em intertextualidades, queremos aqui recortar o capítulo em que Saramago promove o encontro de Jesus com Deus e o Diabo (também chamado de Pastor), e com o qual já vimos interagindo.
Na cena da Barca, Jesus passa quarenta dias dialogando com Deus e Pastor no meio do mar. Estão envoltos por um espesso nevoeiro que impede os pescadores de pescar, bem como a aproximação de qualquer outro que não estes três personagens. A cena inicia com o ato heróico de Jesus, que “com uma incrível segurança, pois o nevoeiro não deixava ver nem os próprios pés, desceu o declive que levava à água, entrou numa das barcas que ali se encontravam amarradas e começou a remar para o invisível que era o centro do mar” (p. 303). Quando a barca chega ao centro do mar e do nevoeiro, surge Deus sentado no banco da popa, vestido como um judeu rico e de aparência dura e idosa. Logo Saramago nos dá a saber o objetivo do encontro: Jesus busca respostas, as mesmas respostas que buscamos todos nós desde que em humanos nos transformamos, a saber, quem somos e para que viemos. É sobre estas duas questões que há de se travar o debate: “Vim saber quem sou e o que terei de fazer daqui em diante para cumprir, perante ti, a minha parte do contrato” (p. 304). É na releitura dos Evangelhos que Saramago nos devolve ao clássico debate filosófico sobre nossa essência e condição humanas.
O texto é intenso e denso, como tantos outros deste autor português, sua marca registrada. Os diálogos se colam uns aos outros, como que se falas ansiosas e nervosas representassem. No primeiro momento, falam apenas Jesus e Deus. O Diabo chega mais tarde, a nado, e seu corpo não pesa na barca. O Diabo é leve e se parece com Deus, porém mais jovem, e a posição que ocupa na barca é intermediária: senta-se entre o Pai e o Filho. No entanto, Cristo chega a confundi-lo com um porco enquanto ainda está na água, o animal impuro para os judeus e para o qual os demônios foram expulsos quando do exorcismo dos Evangelhos.
A tensão inicial da conversa se dá sobre a essência da natureza de Jesus. Se é ou não homem: “Se és filho de Deus, não és um homem” (p. 305) – afirma Deus, porém, mais adiante, quando Cristo se reconhece enganado por Deus e pelo Diabo, o primeiro quase se contradiz ao afirmar “Como sempre sucede aos homens”, mas completa “...podemos dizer que encarnaste” (p. 307). Ou seja, não é fácil sabermos quem é exatamente este filho de Deus, se homem, se divindade, tal qual o homem que somos também nos Evangelhos, filhos também de Deus. Cristo representa na obra de Saramago a humanidade e sua angústia primitiva, e como todo ser humano, desafia Deus. E mais, a cena da barca alcança o político na medida em que expõe os estratagemas de um governo autoritário e total. Não seria exagero dizer que a releitura saramaguiana invade também “O Príncipe” de Maquiavel. É maquiavélico este Deus insatisfeito com a condição de rei de um povo tão diminuto como o é o povo hebreu e que deseja ampliar seus domínios. Para tanto martiriza seu próprio filho, como assim o faria Abraão (ou como fez na decisão de fazê-lo, ainda que o cutelo não tenha cortado a carne do filho), e aceita inclusive que se subvertam as leis que ele mesmo criou: “...Permites que te subvertam as leis, é um mau sinal, Permito-o quando me serve, e chego a querê-lo quando me é útil...” (p. 315) Para que se atinjam os fins, qualquer meio é lícito, ainda que estes meios signifiquem fazer uso das artimanhas do Diabo e manipular as pessoas, como quando Deus explica seus métodos de persuasão a Jesus: “...há que deixar as pessoas inquietas, duvidosas, levá-las a pensar que se não compreender, a culpa é só delas” (p. 314). Esta mesma “psicologia de massas” é usada por Deus quando este apresenta ao seu filho o papel que lhe destinou: “O de mártir, meu filho, o de vítima, que é o que de melhor há para fazer espalhar uma crença e afervorar uma fé” (p. 309). É este papel de mártir, também, o cerne de toda a moral judaico-cristão, conforme argumentou Friedrich Nietzsche e seu livro “A Genealogia da Moral” (2); ou seja, a compreensão de Deus sobre o papel do mártir na construção de uma identidade é o discurso que estabelece as relações identitárias do povo judeu e, por extensão, do cristianismo que se estabelecerá a partir de Roma, deste “Davi” que no discurso da humildade encontrará a força da sua coesão. Deus profetiza este futuro: “edificar-se-á a assembléia de que te falei, mas os caboucos dela, para ficarem bem firmes, haverão de ser cavados na carne, e os seus alicerces compostos de um cimento de renúncias, lágrimas, dores, torturas, de todas as mortes imagináveis hoje e outras que só no futuro serão conhecidas” (p. 318). Aqui Saramago pode estar falando do cristianismo, como pode também estar anunciando a história dos Estados modernos que exigem dos seus súditos, primeiro, e dos seus cidadãos, depois, a renúncia em defesa da Nação. E o Deus amoroso dos Evangelhos dá lugar ao deus cruel e sanguinário. Serão quase seis páginas de um inventário de mártires e martírios que Deus apresenta a Jesus, necessários para a edificação do seu reino. Há um momento crítico em que Deus, cansado da longa exposição, pergunta ao Filho se este já não está farto de saber de tantos mortos, ao que Jesus responde: “Essa pergunta devias fazê-la a ti próprio” (p. 322) . É o ateísmo de Saramago levado ao extremo da ironia, afinal, qual a necessidade de tantas mortes, tanta dor? Que glória é esta, senão a glória de um Deus psicopata que lembra as cena finais do filme “Saló”, de Pasolini? (3). A todo este arbítrio divino o Diabo responde ironicamente que ninguém poderá culpá-lo de todo este morticínio.
Saramago derruba também o princípio do livre arbítrio na medida em que apresenta um Deus senhor dos tempos, conhecedor de toda a história e inalterável em suas decisões, como quando Jesus afirma, depois de conhecer o futuro, que não deseja mais a glória, que não quer mais participar dos planos divinos. Revolta esta a que Deus responde “... mas eu quero este poder” (p. 327).
É possível conjeturarmos ainda a relativização do bem e do mal nesta cena da barca que aqui estamos ensaiando analisar, quando o Diabo (Pastor) propõe e tenta Deus aceitando que este governe o mundo desde que seja perdoado e recebido junto aos seus anjos mais fiéis. Em nome da salvação da humanidade, Pastor abre mão de ser Diabo, abre mão inclusive de ser Lúcifer, o Archote, já que admite estar na última e humilde fila dos anjos a servirem Deus, além de se reconhecer arrependido. O Diabo quer evitar todo o sofrimento futuro da humanidade. Se na Bíblia Satanás tenta Adão e o Diabo tenta Jesus no deserto, nesta obra de Saramago o Diabo tenta diretamente Deus. Sabem ambos, porém, que tal proposta é inaceitável já que põe por terra a razão mesma da existência de Deus: “Não me aceitas, não me perdoas” – indaga o Diabo; “Não te aceito, não te perdôo,quero-te como és, e, se possível, ainda pior do que és agora, Por quê? Porque este Bem que eu sou não existiria sem esse Mal que tu és (...) Se tu acabas, eu acabo, para que eu seja o Bem, é necessário que tu continues a ser o Mal” (p. 328). Não existe, assim, um bem em si mesmo, da mesma forma como não existe um mal em sim mesmo. Ambos só são possíveis na alteridade, não relação com um outro.
O que procuramos mostrar com esta breve análise da cena da barca, n’O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de Saramago, é de como este, muito além de ironizar ou ficcionalizar o cristianismo, discute as bases teológicas cristãs e de como consegue externar para o campo da política e das relações de poder o que aparentemente pertenceria apenas ao domínio da religião. Não é apenas porque Jesus amou Madalena que este livro se tornou importante e perigoso para o cristianismo, mas principalmente porque relativizou os fundamentos judaico-cristãos nos quais se assenta o Ocidente.
Notas de Fim.
(1) Para este ensaio utilizamos a versão brasileira do livro “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, publicado pela editora Companhia das Letras em 2005.
(2) Nietzsche, Friedrich Wilhelm. A Genealogia da Moral. São Paulo: Moraes, s/d.
(3) Trata-se do filme Saló – ou os 120 dias de Sodoma, 1975, do diretor Píer Paolo Pasolini, baseado no livro “Os 120 dias de Sodoma”, de Sade.
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