No final da tarde, Sandra e Morais davam ordens aos garçons e os últimos retoques no salão de festas, arrumavam os docinhos, os enfeites. Não paravam de falar aos filhos para que se comportassem. Nada de briguinhas, confusões. Queriam uma festa sem defeitos. Luzia, fantasiada de Branca de Neve, ia e vinha pelo salão, sorriso em todo o rosto. Olhava os ornamentos das mesas e paredes. Vistoriava o pequeno palco. Bruno se acercava das guloseimas, pronto a dar o bote. Saulo brigava com o irmão. Não metesse a mão em nada. Morais completava a admoestação. Nenhum deles devia se antecipar ao início da festa, servindo-se antes da chegada dos convidados. Impacientavam-se todos. As crianças corriam, os pais fumavam e se irritavam. E nada de convivas. “Será o trânsito?” Inquieto, Morais chamou um garçom. Sandra se exaltou. O marido não devia beber antes da chegada dos amigos. “Cerveja ou uísque?” A senhora acendeu mais um cigarro e se pôs a andar pelo salão, a revistar adornos e manjares. Um rapaz se apresentou, carregando uma filmadora. Morais pôs-se a dar-lhe instruções. Os meninos ora corriam, ora se abeiravam das mesinhas repletas de gulodices. O sol se punha atrás dos prédios.
A chegada de Xênia, Osvaldo e filhos causou exaltação nos anfitriões. Alegria geral, abraços, risos. Iniciaram-se as filmagens. A menina Ana correu ao encontro de Luzia e entregou-lhe um presente. As demais crianças se fizeram arredias. Sentaram-se os quatro adultos. Morais sorvia goles de cerveja. Cheio de euforia, gritou pelo garçom: trouxesse copos para o casal amigo. Sandra reclamou: queria também um copo. Luzia abriu o embrulho, com pressa, sob as vistas dos irmãos e visitantes. Bateram palmas, deram vivas. A aniversariante arrastou a amiguinha pelo braço: iria mostrar-lhe todo o salão. Branca de Neve e os Sete Anões, desenhados e pintados em folhas de cartolina e isopor, anunciavam fantasias. O palco, a cortina, o pano de fundo. “Vai haver uma peça, sabia?”
Sandra anunciou a chegada de Elizabete, Jonas e a pequena Vanessa. E levantou-se para recebê-los. A menina correu na direção de Luzia, presente à mão. Mais abraços, beijos, parabéns. Morais gargalhava, enquanto Jonas se esforçava para mostrar a musculatura do braço. Sandra falava alto. Os garçons serviam bebidas e salgadinhos.
Adão surgiu de mansinho, a esbanjar fumaça pelas narinas. Os anfitriões se disseram surpreendidos. Não o esperavam para tão cedo. O convidado conduzia um objeto embrulhado em papel colorido. Perguntou pela aniversariante. Gritaram-lhe o nome. Luzia sorriu e correu. Apresentavam Adão aos casais convidados quando se anunciaram Onira, Getúlio e duas meninas. Elizabete cruzou as pernas. Onira ajeitou os óculos, enquanto acariciava a filha: “Continua dando aulas?” Morais fumava, Sandra ria e gargalhava: “Continue filmando, rapaz.” Elizabete gritou por Vanessa. As meninas recém-chegadas se dirigiram a Luzia. Queriam entregar uma lembrança, apenas uma lembrancinha. Getúlio passava mão na testa, e parecia rir ou chorar. Osvaldo olhou para o relógio de pulso. Adão dava risada a gosto. Luzia controlava o sistema de som. As crianças iam e vinham pelo salão, olhos nas iguarias. Umas dançavam, outras conversavam. Sandra chamou a aniversariante. Hora de dar início à encenação. Rebuliço no salão. Mais convidados chegavam, carregados de mimos e sorrisos. “Vamos iniciar o teatro. Apaguem as luzes e silêncio.” Bateram palmas. A anfitriã dava ordens ao cinegrafista: não deixasse escapar uma só ação da peça. No palco, acendem-se algumas luzes. Dois personagens se mostram em vestes reais. Mimam uma boneca: a filha há tempos esperada. O rei (Morais) se dirige à rainha (Sandra): A filha teria por nome Branca de Neve. A platéia bate palmas. Xênia ajeitava o cabelo, olhos fitos no palco. O narrador anuncia a morte da rainha. O rei se põe a chorar. Sandra retira-se do tablado e corre à mesa, a rir. Movimento inverso realiza Xênia. O narrador anuncia: O rei terá nova esposa. Um padre passa a celebrar o casamento real. Getúlio mete mão no bolso. A meninada permanecia silenciosa. A nova rainha se mira frente ao espelho mágico: “Existe alguém mais linda do que eu?” A garotada grita “existe, existe.” Jonas alisava o queixo. Sandra fumava. Luzia entra em cena: “Sou Branca de Neve.” A rainha se observa diante do espelho e pergunta quem é a mais bela do reino. Uma voz vinda dos fundos grita: “Há uma menina muito mais bela do que Vossa Majestade”. Morais se retira do palco e chama um garçom: “Mais cerveja, que o rei está morto”. Risos e gargalhadas. Luzia pede silêncio, irritada. Sobe ao estrado Jonas. A rainha se dirige a ele e ordena: “Leve a menina ao bosque, mate-a, arranque o coração e o traga a mim”. Onira cochichava para Sandra. O caçador arrasta a princesa pelo braço. A menina grita e cai. Riem na platéia. Sandra brada: “Cuidado com minha filha.” Luzia se ajoelha e pede clemência: “Não me mate, por favor.” Jonas, o caçador, ergue a mão, olha para a menina e também se ajoelha: “Perdão, princesa. Vou enganar a rainha. Ela quer o seu coração, como prova de que a matei. Vou, pois, matar um cervo e arrancar-lhe o coração. Fuja para bem longe daqui”. Luzia corre para o fundo do palco e Jonas sai pela lateral. Reaparece no salão, a rir e ajeitar a camisa. Batem palmas. Onira olha de viés. Xênia se ergue e se retira. Branca de Neve reaparece no palco; ao fundo o desenho de uma casinha. Deita-se numa caminha e adormece. Jonas esfrega as mãos e levanta os ombros. Entram no palco sete anões, representados por meninos e meninas. Onira cutuca um pé de Sandra. A princesa desperta. Os anões se põem a conversar com Branca de Neve. Sandra quebra um copo. Alvoroço no salão. Morais fumava e batia pé no chão. Reaparecem a rainha e o espelho: “Quem é a mais bonita do reino?” Uma voz rouca ecoa no salão: “A mais bela de todas é Branca de Neve.” A rainha se desgrenha. Risos, vaias. Getúlio ajeita o cabelo com mão. Uma bruxa (Sandra), disfarçada de velhinha, carrega maçãs numa cestinha e bate à porta da casinha dos anões. Jonas enche a boca de empadas. A bruxa oferece uma maçã à princesa. Gritos, conselhos: “Não aceita a maçã; é envenenada.” Luzia sorri, olha para a platéia: “Eu tenho que aceitar e comer. Faz parte da história.” Dá uma mordida na maçã e cai. Os anões gritam, choram. Os convidados batem palmas. Xênia olhava para as coxas de Getúlio. Entra em cena o príncipe, representado por Saulo. Elizabete aproxima-se de uma das mesas, rebolando-se. A princesa ressuscita. Luzia se ergue e abraça o irmão. O narrador fala do casamento da princesa. E encerra, em voz pausada: “E viveram felizes para sempre.” Mais palmas, assobios, aplausos. Xênia pinta-se diante de espelhinho, calada. As luzes se acendem. Palmas, gritinhos, ovações, agitação na platéia. As crianças se dispersam, correm. Sandra olhava para a barriga de Jonas. A aniversariante pergunta se está na hora dos parabéns. Sua mãe levanta-se, retira-se da mesa e grita: “Vamos cantar os parabéns.” A criançada se agita e corre em direção à mesa maior. Luzia se posta junto ao bolo. Todos cantam “Parabéns pra você”. O grande bolo com sete velinhas é cercado de adultos e crianças. Aparecem fotógrafos de todos os lados. Luzia sopra e apaga as velas do bolo. O primeiro pedaço entrega à mãe ou ao pai? Abraços, beijos, gritos, cantos. Inicia-se a distribuição do bolo em pratinhos. Osvaldo não pára de falar: “Bebida é fundamental, tudo é droga.” Getúlio ajeita a cabeleira e anuncia, baixinho, para Osvaldo: “Sonho que sou escravo.” “Escravo da mulher? Só se for da melhor.” “Com mulher de farda nem o Diabo pode.” Onira deixa a mesa, irritada. Sandra sai atrás dela. “Ele tem outra.” Getúlio olha para elas e se volta para Osvaldo: “Casamento não foi feito para mim.” Adão ajeita os óculos e discorre sobre sexo imaginário. Xênia alisava a face: “Amizade com mulher, até certo ponto.” Onira olhava para o busto de Xênia: “Sabia do nascimento do bebê de Oxesiscrana?” Adão ajeitou os óculos, cigarro nos dedos, e separou-se do grupo. Osvaldo chupou o copo: “Todo governante é ditador.” “Todo ditador é governante.” “Não, toda mulher quer governar homem.” Morais olhava para Jonas: “Clube de futebol virou negócio.” “Tudo é negócio mesmo.” “Como é aquela frase? Tempo é dinheiro.” “Time is money.” Adão acendeu um cigarro: “Droga significa volta à inocência.” “Usar droga para não ser adulto?” “Ele quer dizer o seguinte: drogado parece criança.” “Não é bem isso.” Elizabete piscou para Sandra: “Homem tem de ser fogoso.” “Muito fogo para se queimar.” “Não vá me queimar com esse cigarro.” Sandra fumava e olhava para os quadris de Elizabete: “Homem só pensa em sexo na hora, pouco antes, muito antes, mas só por um minuto.” Sandra, Elizabete, Xênia e Onira se dão as mãos e se põem a dançar. “Na Idade Média o casamento...” “A idade média para o casamento deve ser aos vinte anos.” “Cadê os sete anões?” “Mais cerveja aqui, garçom.” “ E a aniversariante já fugiu com o príncipe?” “Quem quer bolo?” “O príncipe se escafedeu, se safou.” “Morais, ainda tem uísque?” Jonas mordeu orelha de Elizabete: “Adoro orelhas.” Ela se esquivou: “Adoro minhas crianças e odeio cigarro, bebida, conversa fiada.” Um casal com filhos se despedia dos anfitriões e da aniversariante. Derrama-se cerveja numa mesa. Crianças pulavam, corriam, se esgoelavam. Onira chamou o marido. Adão tentava conversar com Getúlio: Sabia o significado dos anões? “Uma louca!” Sabia? “São os sete pecados capitais?” Mais convidados se retiravam. “Por que já vão?” Espoucavam balões. “Mais cerveja?” Sandra se pôs a cantar como os anões. Palmas, assobios. Um dos anões chorava, aos berros. Outros se iam, atrás dos pais. Os anfitriões agradeciam os presentes e as presenças dos convidados. Os garçons cambaleavam. O cinegrafista ria. Pedaços de bolo e salgadinhos espalhados no chão. Cerveja e refrigerante derramados. Gritavam, vociferavam, gargalhavam, dançavam, corriam, caíam, choravam, reclamavam.
Súbito as luzes se apagaram. “É o fim do mundo.” “Passam anos e vêm anos e é essa mesma coisa.” “É o caos, meu amigo.” “Mãe, cadê você?” O vulto de uma bruxa passeava pelo salão. Uma voz sibilava: “A morte vem vindo.” Havia medo nos olhos das crianças e angústia em cada adulto. Meia-noite.