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segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Notas poéticas: Métrica e visão de mundo de Augusto dos Anjos (Henrique Marques Samyn)


(Augusto dos Anjos)

Indubitavelmente um dos mais extraordinários nomes da poesia brasileira, Augusto dos Anjos, embora fosse poeta dos mais inspirados, parecia sempre compelido a asfixiar o lirismo em versos de uma rigidez assombrosa. Compreenda-se, no entanto, que esta expressão – “asfixiar o lirismo” – não se refere aqui a qualquer tipo de sobrevalorização da forma, mas sim a uma opção estética perfeitamente coerente com sua matéria lírica, como espero esclarecer nas próximas linhas.

A singular natureza do lirismo de Augusto dos Anjos deriva de sua não menos singular atitude perante a realidade, exemplarmente definida por Álvaro Lins como uma contradição entre as frágeis certezas de um materialismo de bases cientificistas e uma insaciável inquietação existencial com aquelas incompatível; deste modo, o poeta buscava o absoluto movendo-se em meio ao “círculo do nada físico”, para utilizar a precisa expressão do referido crítico. De onde as aporias nas quais Augusto dos Anjos incessantemente mergulhava, que podem ser exemplificadas pelo segundo quarteto de seu soneto dedicado ao filho natimorto, no qual os conceitos emprestados da ciência revelam-se inúteis para a compreensão da morte brutal: “Que poder embriológico fatal / Destruiu, com a sinergia de um gigante, / Em tua morfogênese de infante / A minha morfogênese ancestral?!

É desta contradição seminal que deriva a estética do vate paraibano. Dante Milano analisou-a com agudeza: Augusto dos Anjos utilizava reiteradamente decassílabos acentuados na sexta sílaba (heróicos), nos quais eliminava implacavelmente os hiatos (na feliz expressão de Milano, “nunca largava a tesoura para cortar a cabecinha das inocentes vogais que às vezes queriam brincar-lhe no decassílabo”) e entremeava proparoxítonos. O resultado eram versos de uma rigidez assombrosa que, por vezes, parecia prestes a se flexibilizar pela presença de algum proparoxítono; falsa impressão, logo desfeita por conta da repetição métrica – os fragorosos decassílabos que, sempre acentuados da mesma forma, criavam um andamento de uma solidez impressionante. As sinalefas de Augusto dos Anjos chegavam a criar alguns versos virtualmente indeclamáveis, como o que abre os “Mistérios de um fósforo”: “Pego de um fósforo. Olho-o. Olho-o ainda. Risco-o” – que deve, evidentemente, ser lido como decassílabo!

A dureza dos versos do vate paraibano deve ser compreendida como a expressão mais adequada para sua visão de mundo: percebendo a matéria como uma espécie de cárcere em cujas celas a vida, convulsamente, espraia seus tentáculos e evolui em um implacável ciclo de destruições e renascimentos, também em seus versos constringia o lirismo com singular mestria; o resultado, por outro lado, não era um enfraquecimento deste, mas sua intensificação. Se nos versos de Augusto dos Anjos não havia frinchas que permitissem a passagem do ar, todavia o lirismo neles enclausurado permanecia vivo – e sem demonstrar quaisquer sinais de debilidade.

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sábado, 19 de janeiro de 2008

Boi da cara triste - terceira parte (Nilto Maciel)





 










CALVÁRIO

- I -
Navegava a lua para as bandas do Candeia, feito cabaça na correnteza, passavam por ela tufos de nuvens, latiam cachorros no mundo. E Zé Carroceiro escorregava pelos becos, tochas acesas, garras afiadas, sem um miado na goela seca.
Dormia o boi no curral, exposto ao sereno e aos morcegos, tadinho! Acordou, abriu os olhos, levantou a cabeça, remexeu-se. A sombra do carroceiro atravessava a cerca, a bosta, o chão, e foi se apagando cheia de psius, carinhosa, mansinha.
– Sou eu, amigo velho.
Os calos do homem alisaram a testa do antigo puxador de carroça, e o curral se encheu de cicios.
– Meu boi bonito, eu vim fugido, feito um gatinho, sem alarido, muito contrito, para bem pertinho só de você.
Explicou Zé Carroceiro o motivo daquela visita tão fora de horas, enquanto o boi concordava com as preocupações de sou protetor.
Ao fim do entendimento, deixaram ambos o curral e, pelos becos mais escuros, alcançaram o quintal da palhoça do homem.

- II -
Amontoados defronte o prédio da Prefeitura, os flagelados assopravam o sol. Queriam comida e providências, água e satisfações.
– Mate aquele boi.
Raimundo Pitanga se empapava de suor e cuspia soluções. A verba chegava de trem, o governo não ia falhar. Esquecessem o animal, funcionário da municipalidade.
Os homens escarravam, caras de herege, e num instante o cuspe virava mancha na calçada.
– Conversa para fazer boi dormir.

- III -
Num meio de noite, Zé deu um berro do tamanho do mundo e só faltou cair da rede. Maria não morreu, porém os meninos choraram até de manhã.
– Pesadelo doido, mulher.
A velha acendeu a lamparina e mandou os filhos de volta às fiangas.
– Doidice desse doido.
Na parede, o carroceiro cresceu, cabeça de tacho, orelhas de abano, ombros de aleijado, pernas de sete-léguas.
Tremia a chama da candeia e ora a venta de fole do narrador tomava o lugar de uma orelha, ora sua mão de alabarda destelhava a cabana.
Os meninos soluçavam uns por cima dos outros, cobertos de olhos por todos os lados, arrependidos de todos os pecados, mãezinha do céu.
O pai procurava facões debaixo dos pés e a mãe o agarrava pelas costelas e implorava a Deus.

- IV -
Plantado no quintal de Zé Carroceiro, o boi balançava as orelhas, o rabo e a caceta, guarda da casa de seu colega de lixo. Cuidou, o chão tremia. Varava a terra o dragão do fim do mundo ou andava ao léu a leva dos sem-terra? Esbugalhou os olhos na direção da assombração. Qual nada de fabuloso! Marchavam sobre o quintal eram os bichinhos de dois pés. Vinha nu e enfurecido o safado do prefeito, armado de espingarda. Junto ao seu ombro direito, Luiz Macedo carregava munição. Nos calcanhares deles, Joaquim Traçalha, e mais atrás Manoel Cotia abraçava buchas e mais buchas.
– Lá está ele.
Engrossava a procissão toda nação de gente, olhos fitos no boi, garras e dentes de fora, feito feras.
Enquanto o diabo esfregava o olho, derrubaram a cerca e cercaram o boi. À primeira cutelada, minou sangue dos chifres e ninguém podia contar as mãos que açoitavam o condenado.
Súbito Raimundo Pitanga ordenou silêncio e calma e se dirigiu à turba para uma última questão: queriam mesmo o boi ou preferiam esperar pela verba?
– O boi.
Então o prefeito se afastou e deu passagem aos urubus, que voltaram a surrar o animal.
Um deles correu a um canto da cerca, colheu uns galhos espinhentos, engendrou uma coroa e se precipitou para o local do sacrifício. E coroou o boi, em meio a gargalhadas.
– Salve, boi dos sertanejos.
E davam-lhe bofetadas, cuspiam-no, feriam-no com suas armas.
Tiveram a idéia de fazer uma cruz para maior alegria do pagode, saírem pelas ruas e crucificarem o boi, porém o dia amanhecia e urgia preparar o almoço.
E as todas facas da fome tiravam do boi o couro, rasgavam as carnes duras, faziam de matadouro o quintal do carroceiro, mineiros à cata d'ouro.

Junho/1980 a julho/1982.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Boi da cara triste - segunda parte (Nilto Maciel)




 


















(Retirantes, de Portinari)

Páscoa

- I -

Manuel sungou as calças, alisou a cabeleira, moleques atrás de uma bola-de-meia, caras curiosas nas janelas, calorzão dos infernos. Deu uma volta ao redor do veículo e pulou para riba do bicho.
No queixo do tratorista, canhões escuros apontavam para o mundo. Entre os beiços e os buracos da venta, um bigode preto assanhado. Cara dura fincada no pescoço grosso de touro.
***
No curral da prefeitura, o boi dormia em pé e berrava. Num canto, a velha carroça coberta de moscas. Aqui e ali, touceiras de capim amarelado.
– Só resta matutar, meu boizinho.
Zé largou a pá e alisou o lombo do companheiro.
E fungou.
***
No rio, a meninada brincava de procurar água, enfiava as mãos na areia, corria, pulava, dava bundacanascas, mentia de nadar e se afogar.
– Socorro.
***
No terreiro de casa, Zé Carroceiro amarrava mato seco a um pedaço de pau.
– Que diabo é isso, homem?
Ora, se não podia mais dirigir a carroça, ia varrer rua, arrastar vassoura no calçamento.
Nem sequer levantou a vista para Maria, as mãos calosas entretidas nos nós. Também não tinha mais idade e sustança para sair correndo de porta em porta, carregando latas de lixo, como Chico Preto. Nem perder o emprego. Deus o livrasse dessa desgraça.
Fizeram o sinal-da-cruz, beijaram as pontas dos dedos.
E a carestia?
– Tudo pela hora da morte.
- II -
Antes de ser boi-de-carroça, de carregar a porcaria das casas e da rua para o monturo, vidinha besta, porca, foi garrote o amigo de Zé Carroceiro. No sertão, fartura e fome, chuva e seca, e a promessa de virar cozido. Terras de Raimundo Pitanga. E a decisão do prefeito de a Prefeitura adquirir um garrote para os serviços de limpeza pública.
De tanto fazer força e o tempo passar, cresceu, virou boi, agigantou-se. Quando pisava, o chão tremia. E todo dia passeava defronte das casas, orientado por Zé, que pouco ou quase nada nele batia, seguido de Chico Preto, que enchia até à tampa a carroça.
Tudo se limpava para se sujar de novo.

- III -
Espantou-se o boi com a passagem de homens descalços, magros, cor de cera.
– Boi bonito, hem!
Magote de sertanejos sujos e pedintes.
– Aqui pelo menos tem sombra.
Arrancharam-se diante do Palácio Entre-Rios, cobertos de chapéus de palha esfiapados, calças remendadas, pele queimada.
– Esse prefeito tem que arranjar comida.
Choro de crianças, lamentos, pragas. Seios murchos de fora e bocas sedentas a chupá-los.
– É a fome, minha gente.
Raimundo Pitanga surgiu à porta, engomado, branco, duro, a cuspir verbos.
A multidão se alvoroçou na calçada.
– O povo quer é comer, seu prefeito.
A autoridade pediu paciência, calma. Se Deus não mandava chuva, rezassem. Cada um no seu lugar. Água salgada no mar, padre na igreja, sertanejo no sertão, sapo na lagoa.
– Só se for a sua lagoa.
Riram as multidões. E cada um disse a sua, gritou, socou o chão com os pés. Menino chorou, faca riscou o cimento. Se o prefeito não arranjasse comida, invadiam a feira.
O boi lá longe fez mum.
E ninguém riu.

- IV -
Pulou do jipe Pitanga, diante do armazém de Luiz Macedo.
– Um cafezinho, chefe.
No chão, pó de tudo quanto hai, montanhas de sacos de algodão, cheiro de milho, feijão e gorgulho.
O prefeito beijava a xícara, assoprava e revirava os olhos.
– Bando de esmoleres.
Bichinhos miúdos atacavam seus pés, fartos, redondos, muitos.
– E o que se vai fazer?
Escorria suor das caras do prefeito e do atacadista. Colarinhos amarelos, bigodes tabacudos, olhos acesos.
– Caso de polícia.
Aceso, o palito de fósforo caiu bem em cima de um bichinho preto, que esticou os cambitos, estorricado.
– É a única solução.

- V -
Zé Carroceiro apoiou-se na vassoura e cuspiu longe, em tempo de sujar o homem que puxava um jumento carregado d'água.
– Não foi por gosto.
Um pedacinho de riso arranhou os dentes de Chico Preto. A pata do animal cobriu o resto da masca de fumo.
– Toque-toloque-toque.
O jipe de Raimundo Pitanga freou ao lado da bomba de gasolina.
– O tratorista.
Um cachorro enfiou a venta no cuspo do carroceiro, deu uma fungada e sarpou.
– E o prefeito arribou mesmo?
Cotia cutucou o carro, disparou feito bala e a catinga de gasolina tapou a boca de Chico.
– Hein?
Voltaram os dois a barrer a coxia, envergados, num vaivém cadenciado.
– Lá vem o trator.
Atrás deles, montinhos de lixo, bosta de cavalo, ponta de cigarro, capim seco, jornal velho, resto de osso.
– Basta uma faísca para isso pegar fogo.
Longe, o magote de flagelados espiava o tempo, comia farinha de cócoras, espantava o sol com chapéus furados.
– Será que o prefeito vai trazer verba?
O trator roncou junto aos ouvidos dos varredores. Zé subiu a calçada de um pulo.
– Isso lá é carroça de gente.

- VI -
Amontoados debaixo das marquises, os flagelados resmungavam.
– Esse Pitanga não é flor que se cheire.
Um cutucava os dentes com um pedaço de pau, a fazer caretas, feito soim.
– Tanta carne e a gente com fome.
O boi deu um longo mugido para as bandas de longe.
***
Luiz Macedo saiu esmagando gorgulhos e parou à porta do armazém.
– Bom-dia, compadre.
O outro parou, acendeu um cigarro, pigarreou.
– E esses cassacos?
O atacadista franziu a testa, espantou a fumaça, abriu e fechou a boca, mexeu e remexeu os beiços, assanhou o bigode, engelhou a cara.
– A salvação é o boi.
***
Os varredores encostaram as vassouras na parede, tiraram os chapéus, pediram cachaça.
Joaquim Traçalha abocanhou a cortiça com os dentes, fechou os olhos, chegou a garrafa aos copos.
– E aquele boi da carroça?
Zé engoliu o seu bocado, estalou os dedos, cuspiu ao pé do balcão.
– Triste que só vendo.
Chico Preto pediu um tico de farinha, esfregou a costa da mão, nos beiços, lambuzou-a toda.
O bodegueiro apresentou-lhe a cuia cheia do pó.
– Se não matarem o boi, os flagelados vão saquear o comércio.

(Continua)

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Boi da cara triste - primeira parte (Nilto Maciel)

(Parábola de escárnio e maldizer)


Meu boi bonito,
Boi zabumbeiro,
Espalha essa gente
Que está no terreiro!
(Do "Bumba Meu Boi")


PROFECIA

-I -
Deu um tapa no lombo do boi e saiu capengando. O animal entortou o pescoço em sua direção e berrou. Zé Carroceiro estacou e virou-se.
– Volto já.
Enfiou o chapéu na cabeça e retomou a marcha. Tropicava nas pedras mal assentadas da rua, olhos pregados no chão e no casario adiante. Risinho no canto da boca, resmungava, à cadência dos passos.
– Que será?
Diante da Prefeitura, parou, benzeu-se e levou às mãos o chapéu. Ciscou feito galinha e, de supetão, venceu os sete degraus da entrada e todo o corredor que ia dar na sala do prefeito. Resfolegava, camisa grudada no corpo. Escorreu o fura-bolos na testa e despejou gotas de suor no chão. Com a mesma mão bateu à porta, de leve.
– Entre.
Frente à autoridade, cumprimentou-a com o chapéu e abaixou a cabeça, solenemente.
Retratos a óleo do Marechal Deodoro, do Presidente da República, de personalidades estaduais e municipais há muito pendurados à parede cercavam Raimundo Pitanga. Ladeavam-no bandeiras do Brasil e do Ceará. Sobre a mesa, papéis, canetas, cinzeiros, cigarros, um jarrinho de flores. Toda a sala recendia a silêncio e respeito.
– É só para falar do lixo.
Zé dizia sim com a cabeça, testa franzida, olhos piscando, boca aberta, mãos atadas ao chapéu. Prendia a respiração, aquelas barbas, aquelas patentes, aquelas imponências falando pela boca do prefeito.
– O progresso, o senhor sabe.
A voz grossa enchia a sala de palavras escolhidas, bonitas, sonoras, difíceis, às vezes engasgadas. E se misturavam à mão-caneta que ia e vinha sobre o papel, riscando, desenhando, anotando. Um cigarro atrás do outro envolvia a carroça, o boi e o lixo da cidade num nevoeiro imenso.
– Um trator.
O carroceiro amolegava a palha do chapéu, fitava as autoridades, lambia os beiços, fazia caretas.
– Entendo, sim, senhor.
Uma negra trouxe café para o edil, que o sorveu devagar, caneta apontada para o funcionário.
– Carroça, coisa do tempo do bumba, não é?

- II -
Caminhava, lerdo, mãos estiradas segurando o chapéu surrado, chinelos varrendo a rua, assustando os cachorros dorminhocos.
– Do tempo do bumba-meu-boi?
Zé atravessava a praça, atrapalhando a brincadeira da meninada, que jogava bola-de-meia, corria e gritava.
– Pára.
Parou, franziu a testa e os moleques debandaram, sumindo detrás dos benjamins. A bola contorcia-se, pequena, indefesa, aos pés do carroceiro, que a chutou, desajeitado, zambeta.

***
O pagode começou já tarde da noite, o terreiro cheinho de gente, a lua ajudando os candeeiros.
– Viva o boi.
Zé fantasiado de chifres de mesmo, arranjados com finado Capitão Marcelino, vestido de couro de remendos, balançando o chocalho no rumo do povo, dançando feito uma dama, rindo para os que iam matá-lo.
E o boi morreu e renasceu depois de um tempão de brincadeira.
– Quede a cachaça, pessoal?
– Eu não era boi de vera, ele.

***
Chegou junto ao animal, alisou-lhe a cara, vagarosamente, e disse baixinho que se preparasse para receber a notícia: o prefeito ia trocá-lo por um tal de trator. O boi estremeceu, fitou-o com demora, gemeu e chorou.
– Você não é tão velho assim, nem nunca dançou, não é?
O boi balançou o chocalho, estendeu a língua para o companheiro, como se o quisesse lamber, e em seu focinho desenharam-se as marcas de um sorriso. O carroceiro abraçou-lhe o pescoço e fungou.

- III -
Montinhos de terra e capim ao longo do fio-de-pedra, aos pés do boi, como se arrumados sob medida. O poste pintado de branco até à altura de uma pessoa descia em sombra sobre o animal, cortando-o ao meio. As paredes amarelas do Grupo, o muro alto, uma lagartixa que acenava, janelas de combogós, tudo como numa paisagem desbotada.
– Amigo velho.

***
Passavam defronte à casa amarela de porta e janela azuis na Praça Waldemar Falcão e Chico Preto pediu que parassem. Saía sangue de sua mão esquerda.
– Foi nessa lata.
Zé bateu palmas à porta da casa e pediu qualquer coisa para fazer um curativo: água, álcool, pó de café, fiapo de pano velho que fosse. Veio uma velha coberta de cabelos brancos, debulhando um rosário nos lábios murchos e arrastando umas chinelas mofadas.
O boi mugiu qualquer coisa e tiveram que pedir auxílio aos vizinhos.

***
As portas laterais da Matriz fechadas. Morcegos chiavam desesperados entre as paredes seculares. As casas, ao redor da praça deserta, refulgiam como arco-íris, assediando a Prefeitura imponente. Do chão, do calçamento evolava a fumaça do meio-dia. O carroceiro cochilava sobre os chinelos gastos, pés rachados como o sertão, calças frouxas e remendadas, cintura amarrada a cordão, mãos calosas em busca da terra, feito papungu no meio do mundo.

***
No monturo, cheiro de podridão, urubus alvoroçados, saltitantes, cachorros, porcos e galinhas disputavam restos de comida, pedaços de ratos e baratas, molambos sujos de sangue e bosta.
– Eu não me acostumo com imundícia.
Zé e Chico despejavam mais lixo para o repasto dos bichos caseiros.
– E quem vai se acostumar?
– O diabo.
O boi deu um berro tão esculhambado que os cachorros saíram em disparada, os porcos escapuliram aos roncos, as galinhas disputaram o céu aos urubus, Zé benzeu-se e Chico subiu à carroça.
– Valha-me, Santo Deus.

***
Escanchado no fio, um passarinho escorregava montado num tufo de nuvem na direção da serra. A sombra do carroceiro beijava os pés do boi, recostando a cabeça comprida no travesseiro de terra e capim.
– Eita vontade de tirar uma modorna.
O animal ergueu os chifres, olhou para o sol e respingou baba sobre a cama de pedra da rua.
– Estou é brincando, bichinho. Vamos trabalhar.
***
O prefeito, montado no jipe, passou no rumo do Potiú que parecia uma bala. Nem olhou para a carroça carregada de lixo.
– Já vai, danadinho?
O boi deu uma risada da caçoada, sem se importar com a poeira levantada pelo carro.
– Lixo de rapariga é vidro de perfume.

***
Pelos pés do carroceiro passeava uma formiga apressada. Parou no unhão e caiu no chão. Nenhum outro animalzinho andava pelo corpo do velho. Só um urubu pousava pequenino entre o chapéu e o telhado do Palácio Entre Rios.

- IV -
Com pouco, apareceu de novo o focinho de gato do jipe velho do prefeito. Aqueles dois olhões de enxergar todo mundo, aquele riso escangalhado.
A poeira subia e os cachorros atrás, malucos, inconformados com a velocidade do bicho.
– Ainda mato um peste desses.
Custou a pregar as patas redondas no calçamento. Fuçava o chão, em tempo de botar os bofes pela boca.
– Quem é, Chico?
Não o montava mais Pitanga, cavalgava-o Manuel Cotia, dentes de ouro a ranger. Apeou-se, rodou a chave no dedo, balançou as calças.
– Sede da gota.
Nem piscava o olhão amarelo do sol em cima de tudo. O chão chiava de se crestar. Zé Carroceiro apertou os olhos. Da venta de Chico escorria catinga de lixo. No lombo do boi não encostava nem mosquito.
– Vai ser jipeiro agora?
Manuel arreganhou os dentes para morder o tempo, coçou o fundo, bateu nas ancas duras do carro. Gostava lá daquela geringonça!
– Sou é tratorista.
E a chuva, caía ou não passava da Bahia? Parecia até a seca do quinze. Coitado do povo do sertão, nem chão, sem são nenhum de proteção.
– Mas Deus é grande.
O carroceiro cobriu a vista com a mão do coração e se afundou nas lonjuras do céu.
O boi almoçava o capim da coxia, incréu e sem berro.

- V -
O relógio da Matriz badalou doze vezes e as tripas de Zé roncaram.
– Lombriga.
Chico Preto diminuía cada vez mais de tamanho, no rumo do Beco de Labirinto. Pisava lá e acolá, feito urubu cangueiro.
– Sou é tratorista.
Mais nem sinal do Cotia, nem do jipe.
Fungou o carroceiro, levantou um pé, inclinou o esqueleto, quase escorregou no próprio escarro. Arrastou as chinelas na fornalha da calçada, em perseguição da sombra de sua lerdeza.
A cachorrada se metia nas latas de lixo soltas no chão, fuçava, lambia, sonhava.
Pelas janelas abertas das casas saltava a zoada de colheres cavando pratos, de meninos enjoados, homens e mães enjoados.
– Se não comer, não vai brincar.
Na praça, burros arrancavam raízes dos pés de benjamins e o mundo sobre o chapéu de Zé era uma terrinha azul com uma gema de ovo no fundo.

- VI -
Escancaradas as portas da bodega de Joaquim Traçalha, feito portão de feira. Na boca do carroceiro, nem um tiquinho de cuspe. Língua de papagaio.
– Bote uma p'r'eu matar o bicho.
O bodegueiro deu-lhe as costas, chupou os dentes, alcançou as prateleiras.
– Colonial ou Guaramiranga?
Meiou um copo nas barbas de Zé. Se chegava ou completava.
Arrolhou de novo a garrafa e viu as gengivas podres do freguês. E a cachaça a ferver na goela e se encachoeirar no rumo dos peitos do carroceiro.
– Boa, hein?
Zé meteu a mão no bolso. Dinheiro amassado e sem valor. Cobrasse e botasse outra. Criar coragem de chegar em casa.
– Calor dos seiscentos.
O bodegueiro deu o troco, retirou a tampa da garrafa, despejou a cachaça no copinho. Enfiou outra vez os olhos dentro da boca de Zé. E encolheu o nariz.

- VII -
– Lá vem o pai.
Abaixou-se o carroceiro ao passar pela porta. E só faltou quebrar os chifres.
Desbotados, grudados na parede, São Francisco, padre Cícero e Virgem Maria olhavam para o dono da casa.
Num canto, o pote, inchado, da cor de nada. O cururu havia voltado. Não adiantou desperdiçar tanto sal.
– Bicho teimoso.
Maria esfregou as mãos nos remendos do vestido, deu um pito no cachorro, caçou a vassoura.
– Trouxe a farinha?
A que tinha não dava um pirão escaldado.
O cachorro velho, cego, carga de ossos, lambia os beiços debaixo da mesa. Um magote de caneludos coçava perebas, catava piolhos, chupava catarro, fedia a bosta e ceroto.
– Vá ali na comadre, Chiquinha, e peça uma xícara de farinha emprestado. De tardinha eu pago.
A menina ensebou as canelas e chispou.
Soprou a trempe a mulher, cinza para todos os lados. E o homem ali, a rondar a mesa, tropicar nos mondrongos do chão.
– Essa menina parece que foi buscar a morte.
Levantou a vista Zé, arrotou cachaça, remoeu o lixo da goela.
– Fala, cristão.

***
Olhava para as paredes limpas da sala do prefeito, mesa repleta de tinteiros, ordens, tudo lustroso, cercado de Osório, Caxias, Deodoro, Ananias.
– O progresso da cidade, o senhor entende?
As mãos de Raimundo Pitanga desenhavam arabescos, labirintos, encenavam dramas, tragédias, e tudo encandeava o carroceiro, fazia-o perder o sossego, o equilíbrio, a razão.
– Compramos então um trator.
Sobre o bureau, fotografias exóticas, um bicho de grandes rodas, sistema dum jipe aloprado.
– E, como o senhor compreende, contratamos um tratorista.
A sala toda se retorceu, feito animal debaixo de chicote, girou, deu cambalhotas, entrou num remoinho danado. O prefeito pulava a mesa, as cadeiras rebolavam, a tinta do tinteiro sujava as paredes, os heróis pulavam fora dos quadros e se atracavam, o Palácio só faltava desabar.
– É o seu Manuel.

***
Horrorizada, Dona Maria fazia os pratos de arroz, feijão e farinha.
– Agora é ser varredor de rua.
Os meninos mordiam os beiços, chupavam as línguas, devorando o barro das panelas, olhos cheios de garras.

(Continua)

domingo, 13 de janeiro de 2008

A paixão pelos livros (Enéas Athanázio)


(Enéas Athanázio)


Quando teve início a difusão da Internet, repetiram-se as profecias no sentido de que o livro, em seu formato tradicional, estava com os dias contados e acabaria por desaparecer num futuro não muito distante. A freqüência com que surgiam esses vaticínios deixou deveras preocupados os amantes do livro, mas foi uma preocupação vã porque até agora aquelas profecias não se realizaram e os fatos parecem indicar que estavam equivocadas. Com efeito, nunca foram publicados tantos livros e sobre os mais variados assuntos como nos dias de hoje, inclusive no Brasil, e o consumo também cresceu de forma considerável. As Bienais do Livro, tanto em São Paulo como no Rio, são visitadas por um público cada vez maior e vendem milhões de exemplares de todos os gêneros. É verdade que, em termos comparativos com nossa população, o percentual de compradores de livros ainda é pequeno, mas houve uma evolução sensível desde que comecei a freqüentar essas feiras. Sempre que visito as livrarias, em especial as grandes, fico impressionando com a quantidade, a qualidade, a variedade e o tamanho das obras publicadas. Livros sofisticados, impressos em papel especial, em várias cores e recheados de ilustrações revelam uma indústria livreira competente e arrojada, sinal de que confia no mercado e investe pesado. Afirmava-se também que os livros grandes, com muitas páginas, não encontrariam público, mesmo porque o tempo dos leitores é cada vez mais escasso. Puro engano: obras enormes, em vários volumes, beirando o milheiro de páginas, figuram muitas vezes entre as mais vendidas, apesar do preço elevado. Em recente viagem a São Paulo conheci a “Livraria da FNAC”, num imenso subsolo da Avenida Paulista, cuja exposição é tão grande e variada que mais parece um shopping livreiro, exigindo tempo e paciência para uma simples visita. Ela promove, todos os meses, inúmeros eventos relacionados ao livro e à literatura a que denomina “Encontros na FNAC”, atraindo considerável público interessado. Por outro lado, tanto os catálogos das editoras como as notícias de lançamentos de novos títulos, publicadas nos jornais, informam a respeito da grande quantidade de obras novas que são colocadas no mercado a todo instante. O jornal “Folha de S. Paulo” criou a “Publifolha”, espécie de editora paralela de livros, e tem feito o lançamento de obras importantes, nacionais e estrangeiras, a preços reduzidos e com boa qualidade gráfica. A “Biblioteca Folha” publicou uma coleção de clássicos a preços baixos em relação aos de mercado, incluindo obras de Hemingway, Graham Greene, Somerset Maugham, Franz Kafka, Vargas Llosa, F. Scott Fitzgerald, Joseph Conrad, James Joyce, Vladimir Nabokov, Graciliano Ramos e outros. Conclui-se, pois, que aqueles que previam a substituição do livro pelo computador estavam completamente enganados.
Aqui no Estado a situação não é tão promissora. Nossas feiras do livro são fracas e não dispomos de boas livrarias, com poucas exceções. E o mais grave é que não temos livreiros, na verdadeira acepção da palavra, daqueles que conhecem e amam o métier, com as poucas exceções de praxe. Consta que existem no Estado cerca de cinqüenta editoras, entre as quais as oficiais. A rede de livrarias no território estadual é pequena, o mesmo ocorrendo com as bibliotecas públicas, muitas delas apenas nominais, mas que não funcionam ou o fazem de forma precária. A visita a muitas delas é desanimadora. Creio que nunca houve, pelo menos que me lembre, um esforço sério e contínuo para dotar o Estado de bibliotecas públicas bem aparelhadas, com um acervo razoável e pessoas qualificadas.
No plano nacional, tem aumentado o número de livrarias convencionais. Ao lado delas funcionam os sebos, muitos deles de luxo, embora a maioria seja popular, instalada nos mais diversos locais, inclusive nas calçadas das vias públicas. Os primeiros compram e vendem obras raras, esgotadas e de difícil acesso, atingindo algumas delas preços incríveis. É o caso da “Leart – Livraria e Encadernação”, pertencente à minha amiga Zelina Castello Branco, viúva do escritor, jornalista e bibliófilo Carlos Heitor Castello Branco, o maior expert em livros que pude conhecer. Instalada no bairro de Pinheiros, em São Paulo, possui livros que fazem a alegria de colecionadores de todo o país e que a visitam de tempos em tempos na incansável pesquisa de raridades. Os sebos “Brandão” e “Calil”, da mesma cidade, também são admiráveis pela quantidade e variedade de obras à venda. O primeiro deles ocupa nada menos que nove andares com as paredes recobertas de estantes repletas. Numa visita ao “Calil”, o gerente ficou muito aborrecido porque não encontrei nenhum dos três títulos que procurava. Outros sebos bons existem também no Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba, Florianópolis, Blumenau e outras cidades, muitos deles com aquele cheiro característico do livro usado que os identifica à distância. Sebos populares vendem livros a preços inferiores ao de um exemplar de jornal. Só não lê quem não quer.
À margem desse mercado oficial do livro se desenvolve imensa rede informal constituída pelas pequenas editoras, edições feitas pelos próprios autores (edições do autor), edições feitas em sistema de cooperativas, obras editadas por empresas e instituições culturais e obras fora do comércio. Em tiragens maiores ou menores, quase nunca chegam às livrarias ou só são expostas em algumas, realizando seus autores as vendas diretas aos interessados, com largo uso do sistema dos correios para a distribuição. Circula dessa forma grande volume de livros, cujo número é impossível precisar. Houve um período bastante longo em que ocorreu verdadeira “febre” de antologias, todas publicando e vendendo. O encarecimento dos custos diminuiu essas edições, embora muitas ainda continuem sendo feitas. A publicação por tais meios nem sempre influi na qualidade das obras; muitas vezes são de qualidade literária superior às que contam com grande divulgação e esmerada distribuição. A maioria dos best-sellers que pulula nas montras dos livreiros é de valor literário inferior. Em literatura, distribuição agressiva e divulgação constante na mídia não constituem garantias de qualidade. Muitos autores célebres preferiram publicar seus livros em pequenas edições pessoais e bem elaboradas que em tiragens mecânicas e impessoais saídas de grandes prelos. O escritor português Miguel Torga é um exemplo; a britânica Virgínia Woolf criou pequena editora artesanal na qual dava a público obras artísticas em conteúdo e feição gráfica. Por outro lado, muitos autores que publicam por conta própria vendem bem, tornam-se conhecidos e até se transformam em escritores profissionais. Suas obras, com o tempo, conquistam espaços, vencendo os óbices criados pela ausência de divulgação e se impõem. Tenho conhecido escritores que viajam pelo país com suas obras embaixo do braço, vendendo-as aqui e ali, e vivem apenas dessa atividade. Muitos nomes poderiam ser lembrados.
Falando-se em livros, não podem ser esquecidas as sociedades ou agremiações que reúnem bibliófilos, bibliômanos, bibliomaníacos, colecionadores aficionados ou simples leitores. Entidades do gênero existem em todo o mundo. Aqui no Brasil, merece referência especial a “Confraria dos Bibliófilos do Brasil” (CBB), com sede em Brasília. Criada por José Salles Neto, com número limitado de associados (apenas 350), edita obras escolhidas pelos seus integrantes em volumes numerados para cada um deles, conforme a ordem de sua inscrição. São livros de reconhecida qualidade literária, sempre que possível publicados em datas que relembram eventos da vida de seu autor, em formato grande, com sobrecapa e caixa, ilustrados de forma exclusiva por artistas plásticos de renome.
A Confraria editou, até o momento em que escrevo, 13 obras, sendo a última saída do prelo, “Dez contos selecionados de Clarice Lispector” (2004). Escolhidos com esmero, com o auxílio do próprio presidente, os contos constituem uma antologia única, revelando inúmeras facetas da contística da autora em suas diversas fases. O livro foi composto em linotipo, a impressão do texto e das vinhetas foi realizada em máquina tipográfica manual, a encadernação e o acabamento executados por técnico especializado, no miolo foi utilizado papel de elite, a capa e a sobrecapa feitas em papel fabricado à mão com fibras vegetais por artesã papeleira. As ilustrações foram reproduzidas em serigrafia a partir dos originais. Elas são de autoria do artista plástico Marcelo Grassmann, muito conhecido, que apresenta, no final do volume, uma suíte com várias páginas de desenhos, em outra tonalidade de cor, enriquecendo ainda mais o livro.
Como se vê, uma obra similar ao que se faz em todo o mundo nas melhores editoras artísticas. Em paralelo, a Confraria lançou as “Edições da Confraria”, publicando livros com venda aberta ao público e com as mesmas qualidades. Em nosso Estado a entidade conta com apenas dois associados. (Contatos: Caixa Postal 8 6 3 1 – CEP 70312-970 – BRASÍLIA/DF).
Como existem livros sobre todos os assuntos imagináveis, é natural que também existam livros sobre livros. O já mencionado Somerset Maugham, leitor aficionado, daqueles que, à falta de outra coisa, liam até guias telefônicos, costumava dizer que não pode haver objeto mais inútil que livro que fala de outros livros. E, no entanto, ele próprio se entregava com prazer à leitura desses livros. Pensando bem, de que serve ler livros sobre outros livros? Não seria mais útil e proveitoso ler os próprios?
Para mim, embora reconhecendo que sou dos poucos, essa leitura ainda tem encantos. Passam os anos e não me canso de ler coletâneas de ensaios literários, como acabo de fazer, trilhando as páginas amareladas de um velho volume denominado “Método e Interpretação”, de José Aderaldo Castello (Edição do CEC/SP – 1964). Nele o autor reuniu textos analíticos de livros de diversos autores, entre os quais Lima Barreto, Monteiro Lobato e Gilberto Amado, nada menos que três dos meus monstros sagrados. Mesmo sendo um exigente exercício de leitura, foi uma experiência agradável, mostrando quão vastos são os caminhos que uma obra pode abrir para um crítico competente.
Li também uma coletânea de crônicas sobre livros, esta mais voltada à análise da paixão livresca, publicada por pequena editora Trata-se de “A paixão pelos livros”, reunindo depoimentos de autores brasileiros e estrangeiros, como Carlos Drummond de Andrade, D’Alembert, Flaubert, Petrarca, John Milton, Camilo Castelo Branco, Montaigne, William Saroyan, Varlam Chalámov, Plínio Doyle, José Mindlin e outros. A disparidade literária entre os textos salta aos olhos, mas o conjunto é interessante. Mindlin e Doyle não são escritores, embora tocados pela mesma paixão que fez deles os maiores bibliófilos nacionais. Os depoimentos do russo Varlam Chalámov e do norte-americano William Saroyan são tocantes, como também o empenho de Doyle para obter algum livro desejado. Como se sabe, ele foi o anfitrião do “Sabadoyle”, reunião de escritores que acontecia em sua residência, no Rio de Janeiro, e que tive ocasião de freqüentar. O livro faz indagar sobre a forma como se inocula a “doença livresca” e o apego que se desenvolve na pessoa, tantas vezes inibindo-a de se desfazer de um livro que nunca serviu para nada, é um autêntico trambolho, mas que tem algo de especial e indefinível aos olhos de seu dono. Como tem acontecido comigo.
E os livros que não se vendem? Nelson Palma Travassos, editor que passou a vida fazendo livros, próprios e alheios, costumava dizer que livro que não se vende é inútil. É claro que tal afirmação era uma brincadeira, pois, se assim não fosse, os livros mais importantes que existem, ou pelo menos a maioria deles, nunca teria sido publicada. O próprio Travassos, homem culto e escritor de talento, sabia muito bem disso, tanto que publicou inúmeros livros de vendagem duvidosa mas de significação cultural ou literária. Como se isso não bastasse, ele próprio publicou um livro denominado “Livro sobre livros” (Editora Hucitec – S. Paulo – 1978), reunindo parte do que produziu de melhor.
Eis aí algumas observações, muito pessoais e empíricas, de quem tem vivido os últimos trinta anos às voltas com os livros, lendo-os, divulgando-os, escrevendo-os e viajando sempre com eles embaixo do braço.
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sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Vasto abismo - quarta parte (Nilto Maciel)

























QUARTA PARTE

Ana vivia ultimamente triste. Quase não via seu pai. Deixou de ser aluna estudiosa e até repetiu o último ano do primeiro grau. Talvez se sentisse só. Por que seus pais não lhe “fizeram” uma irmãzinha? Repetia a pergunta de muitos anos atrás, quando confundia bonecas de pano e plástico com criaturas de carne e osso.
Isaque ainda tentou arranhar desculpas para suas ausências. Andava lendo muito, pesquisando, preocupado com sua vida íntima de escritor. Precisava encontrar novo rumo. Sentia-se perdido, atônito, confuso. Teria valido a pena escrever aqueles seis livros? E se construísse um grande romance? Sim, de vez em quando imaginava-se autor de um livro como Ulisses. Talvez lendo os clássicos gregos e latinos encontrasse o fio da meada. Um herói do século XX inspirado na Grécia ou em Roma antigas.
E falava de poetas antigos para a menina. Lia em voz alta versos em latim:
Nec bibit inter aquas, nec poma petentia carpit
Tantalus infelix, quem sua fata premunt;...
Onde andava o velho dicionário de latim? Terminou comprando novo dicionário. Àquele faltavam a capa e várias folhas. Precisava traduzir Salústio. Se não tivesse voltado à biblioteca, tudo teria sido diferente? Talvez o destino explicasse aquela história. Vânia havia sido posta em seu caminho pelos deuses. Inútil querer a vida de outra forma. Nec bibit inter aquas...
Ana não sabia latim, não gostava de poesias e fugia dos livros. Uma vez até chorou, após ouvir uma sátira de Horácio. Choro sem explicação.
Isaque teve vontade de também chorar. Ou gritar, fugir, sumir. Aninha não merecia um pai como ele. Nem Fátima merecia aquela traição. Tão boa, tão dedicada ao lar. Não deveria ter rivais. Não, aquilo era apenas uma paixão passageira. Logo esqueceria Vânia. Aliás, talvez nem se tratasse de paixão. Apenas desejo.
Quando Fátima descobriu a ponta do fio, nada disse a Isaque. Talvez esperasse novas provas. Não lhe fez sequer uma pergunta. Ele negaria tudo.
Certo de que ninguém no mundo sabia de seus novos sentimentos, Isaque vivia aquela paixão em toda sua plenitude. Para ele, Fátima não imaginava um só átomo de seu tormentoso momento. E por que andava tão nervosa? E a menina, macambúzia, arreliada?
Fátima chegou a seguir os passos de Isaque. Sim, ele só podia ter outra mulher. E queria saber quem era ela. Esteve no banco onde ele trabalhava. Conversou com colegas dele. Sondou diversas pessoas. Não encontrou o menor indício da outra. Pensou em contratar um detetive.
Além do mais, Isaque se dedicava então aos versos. Dia e noite a rabiscá-los. Com certeza havia paixão ali. Ninguém escreveria “versos apaixonados”, se não vivesse uma paixão.
E o nome dela até aparecia em alguns poemas. Sim, chamava-se Vânia. E iria conhecê-la, encontrá-la. Talvez matá-la.
De tanto seguir os passos de Isaque, chegou à Câmara. Perdeu-o de vista logo à entrada. Voltaria noutro dia. Não, melhor esperar. E meia hora depois Isaque saía, acompanhado de uma mulher. Exultou. Enfim descobrira a amante de seu marido. Por que não matá-los logo? Não conduzia arma. Uma faquinha sequer.
Nervosa, Fátima os seguiu. Mais adiante ele se despediu da mulher. Nem um só beijo. Não, aquela não poderia ser a amante, a musa dele. Até porque parecia ter a idade dele, se não fosse mais velha. E nenhuma beleza.
Conseguiu aproximar-se da estranha. Chamava-se Joana e trabalhava na Biblioteca da Câmara. Conhecia, sim, Isaque. Porém há pouco tempo. Ele freqüentava a biblioteca, à cata de livros antigos. “E você quem é?”
Fátima passou a ler todos os manuscritos, rascunhos, anotações de Isaque. Queria a história completa da traição. Desde quando ele a traía e não mais a amava.
Leu até as memórias, as poucas folhas já escritas. Quem seria uma tal Alice? Talvez mais uma das namoradas de Isaque. Não, ele falava de um passado distante. A pobre Alice havia desaparecido em 1970. Provavelmente assassinada pelos militares.
Deixou de lado aquele caderno melancólico. Revirou outras gavetas e encontrou os versos traduzidos de Salústio Segundo. Talvez fosse o próprio Isaque. Um pseudônimo. E uma tal de Julia não seria outra senão Vânia.
Quando leu o “Soneto da paixão insana”, quase ensandeceu. Ali estava a prova mais concreta do crime. O nome da outra aparecia com todas as letras. Tudo às claras. Como se Isaque fizesse questão de revelar sua traição.
Quis rasgar, queimar tudo. Não deixaria um só registro daquela malfadada paixão. Tolice. Com certeza havia cópia.
Leu, com sofreguidão, o prefácio para a edição brasileira dos poemas de Marcus Sallustius Secundus. E só então se convenceu de que não eram de Isaque aqueles versos às vezes tão repletos de lubricidade.
Depois encontrou o velho exemplar do Gurgite vasto. Tudo latim. Isaque não teria escrito aquilo. E nunca lhe falara de tal livro. Tentou ler alguns versos. Inútil. Não entendia nada. "Vivamus, mea Julia, atque amemus..."
Sim, Julia vivera há 2.000 anos. Estava morta, virara fóssil. E sentiu um desmedido alívio, como se de sua alma todos os tormentos sumissem no Infinito.
Mesmo assim, nada mudou na vida dos dois. Continuaram distantes um do outro. Cada vez mais distantes. Como se caminhassem em sentidos opostos. Ela para leste, ele para oeste.
Aconteceu, então, o primeiro ato da tragédia. E Isaque por pouco não perdeu o juízo. Um acidente automobilístico deixou Vânia ferida. E o causador de tudo teria sido Humberto. Bebera em demasia. O carro chocou-se contra um poste de iluminação pública. Vânia foi lançada contra o painel.
Isaque só soube do fato no dia seguinte. Queria visitar Vânia. Precisava vê-la, ter certeza de que nada havia de grave. Não, Joana não tinha razões para mentir. “Você não deve ir à casa dela.” Então telefonaria.
Não, não deveria telefonar. Vânia talvez nem falasse nada. Ou dissesse alguma grosseria. Como naquela tarde muito quente em que a convidara para saírem juntos. O primeiro “não” dela. Um golpe fundo na carne. Para curar a ferida, só a bebida. E sentou-se numa cadeira de bar, bebeu cerveja e escreveu uns versos amargos. É desse dia o pequeno poema “Vasto abismo”:
A dor,
seja a de ficar,
seja a de partir.

O amor,
por mais negado,
por mais aceito.

Tudo é abismo,
o vasto abismo,
onde se afunda
o Ser.

Porém aquele “não” de Vânia já era passado. Agora precisava saber do estado dela. Mesmo por telefone.
Isaque não se identificou e Humberto não insistiu. Passo o fone a Vânia, que falou com tranqüilidade, segurança. Voltaria ao trabalho em quinze dias.
Foram quinze dias de ansiedade para Isaque. Como desejava rever Vânia! Aquilo só podia ter sido proposital. Humberto quisera matar a esposa. Ou matar-se com ela.
Não demorou muito, Humberto e Vânia se separaram. Decisão menos trágica que a morte. Conheceria outras mulheres. Talvez menos tontas que aquela.
Só às vésperas da separação Humberto contou a história a seus irmãos e amigos. Não a mesma que tentou narrar ao sargento Fernandes, no bar. Agora havia mais capítulos. Artur fez-se pasmo e em nenhum momento falou em reação violenta. Se o mano desejava aquilo, só restava cuidar da papelada.
E por que não matar o outro? A idéia veio à tona como uma purgação. Houve até risos e comemorações. E todos quiseram pagar a despesa. Artur quase chorou ao ombro do irmão. O sargento Fernandes dançou, deu vivas ao colega, despejou cerveja na mesa.
Muito antes dessa noite, porém, já Humberto andava no encalço de Isaque. Descobriu onde morava e trabalhava, assim como os lugares que mais freqüentava.
Por muitas noites estiveram no Beirute. Quase sempre próximos um do outro. Humberto ia só e sentia dificuldades em arranjar mesa. Pedia um cantinho, quase por caridade. Como precisava estar ali, sentir a presença de Isaque, o inimigo, a presa! Cada palavra dele soava-lhe como um insulto. Cada gesto uma bofetada. O copo levado aos lábios significava talvez a morte.
Humberto remoía ódio, embebedava-se de solidão e silêncio. Aquele homem a seu lado, cercado de amigos, a falar de livros, poesia e amor, parecia feliz.
Não, não devia atormentar-se tanto. E passou meses sem sequer passar diante do Beirute. Cambada de bêbados, veados, vagabundos!
Voltou com muito alarde. Como a retomada de uma praça de guerra. Humberto e um grupo de sargentos. Seguidas sextas- feiras. Bebiam à vontade e só se retiravam de madrugada.
O primeiro encontro não se repetiu. O grupo de Humberto chegou cedo e ocupou duas mesas. Ao perceber a chegada de Isaque, fez desocupar uma das mesas. E logo chegaram amigos do escritor.
Propositalmente, Humberto e seus amigos falavam alto. Iam de futebol a fórmula um, de mulher a política.
Isaque reconheceu logo Humberto. Porém nem sequer o cumprimentou. O sargento parecia transtornado. Como quando Isaque o viu pela primeira vez. “Um grande escritor”, brincou Vânia, o belo sorriso nos olhos, na face. Aquilo deve ter ferido ainda mais o militar. Para vingar-se, apertou com força a mão de Isaque. Poderia quebrar-lhe os dedos frágeis.
Isaque olhou várias vezes para Humberto. Não sentiu medo, ódio ou ciúme. Talvez um pouco de compaixão. Teve vontade de falar do rival aos amigos. Terminou nada dizendo. Nas vezes anteriores nunca o “vira”. E nem pudera, pois o militar usara disfarces.
Perto da meia-noite o sargento deu um viva à “Revolução de 64”. Houve vaias, algum tumulto. Isaque não se manifestou. Até sugeriu irem embora.
Em casa anotou o incidente num diário bissexto. E lembrou de retomar as memórias. Escreveu dez linhas sobre as passeatas estudantis de 67 e 68. Mais uma vez relembrou Alice, a colega de Faculdade desaparecida em 70. Enquanto escrevia, seus olhos se molharam. Sentiu-se muito deprimido. Tentou escrever uns versos. A indignação, porém, o sufocava. E nada mais escreveu naquele dia.
Depois disso esteve poucas vezes naquele local. Havia ultimado a tradução do livro de Salústio e procurava editor. Escreveu cartas a mais de trinta editoras. Duas ou três deram-lhe resposta: não tinham interesse em publicar poesia. Pensou em arcar com a despesa da edição. Venderia o carro, reduziria os gastos domésticos e pessoais. Não, não valia a pena nada disso. Bastava o malogro de sua própria literatura. Seis livrinhos medíocres, nenhum comentário nos jornais. E talvez nem meia dúzia de leitores. Apenas parentes, amigos e sobretudo “colegas de ofício”. Muita desilusão acumulada. A vida inteira dedicada a inutilidades. Sim, seus livros não passavam disso. Para que, então, gastar dinheiro editando outro livro?
A editora acabou sendo Vânia. Belíssima impressão, com uma homenagem comovente a Isaque, escrita por Nilto Maciel, a pedido de Vânia.
Na primeira folha a dedicatória há muito escrita: “À minha última paixão – Vânia Verbena.”
Isaque tencionava escrever um livro de poesia dedicado a Vânia. Dele fariam parte o “Soneto da paixão insana” e alguns outros dados como concluídos. Porém a maior parte dos poemas restaram inacabados ou simplesmente rascunhados.
E sua última paixão não teve o privilégio de ser musa em livro.
A última sexta-feira de Isaque, o epílogo de sua tragédia não teve sequer testemunhas. Havia bebido duas garrafas de cerveja e voltava para casa. Caminhava absorto para seu carro, após esperar duas horas por uma pessoa. Haviam se conhecido há dias, apresentados por Nilto. Marcaram encontro no Beirute. Trocariam livros. “Ao novo amigo Emanuel Medeiros este As sete patas do monstro, com grande admiração.”
Como o tempo corria! Há dois anos descobrira o secular Marcus Sallustius Secundus. E como sua vida havia mudado de lá até aquele dia! Aliás, dupla descoberta num só dia: o poeta romano e a bela Vânia. Nem sabia qual dos dois lhe trouxera mais prazer.
A dois passos de seu carro recebeu o primeiro tiro. O segundo varou o livro, levado instintivamente ao peito, como escudo. Tombou junto ao veículo e mais quatro balas se alojaram em seu corpo.
E assim findou o tempo de Isaque Paiva, seu vasto abismo.
Brasília, 1991.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Vasto abismo - terceira parte (Nilto Maciel)

























Humberto não sabia explicar, mas sentiu que aquele homem magro, moreno e feio seria, ou já era, seu inimigo. Lembrava-se perfeitamente daquele fim de tarde, do calor, da agitação nas ruas. Havia no ar algo de diferente dos outros dias. Talvez uma molécula de ódio. Como um ser invisível, a voar em torno de sua cabeça. O demônio, qualquer espírito mau.
Vânia conversava animadamente com o sujeito. Certamente tramavam novos encontros. E aquele devia ser o décimo, o centésimo.
O momento exato do surgimento do diabinho deve ter sido quando foram apresentados um ao outro: “Isaque, meu marido; Humberto, um amigo.” Ou logo a seguir, quando Isaque se retirou, apressado. Provavelmente com medo, rabo entre as pernas, feito cachorro.
Um dia teria que acontecer aquilo. Mesmo não sendo comum ir à biblioteca buscá-la. Naquele dia, porém, conseguira sair mais cedo do quartel. E decidira encontrar Vânia. Doutras vezes nada disso lhe passava pela cabeça. Ia para casa, ficava na rua, procurava amigos, tomava cerveja. Daquela vez, porém, o demônio já devia rondar-lhe a testa. Um dia aconteceria o pior.
Há algum tempo, no entanto, percebia nervosismo em Vânia. Por tudo se irritava. E alegava excesso de trabalho. O chefe exigia demais, os colegas não colaboravam. Discutiam quase todo dia. Chegaram a falar em separação, divórcio. E os meninos? Quem cuidaria deles? Ela se arrependia, chorava, pedia desculpas.
Até então Humberto de nada suspeitava. Não lhe chegava à cabeça nenhuma idéia de adultério. Acreditava no amor de Vânia. Na sua sinceridade, na sua honestidade.
Mas vieram os poemas de Salústio, e o veneno da dúvida se instalou no peito do sargento. Nenhum mal haveria se os versos fossem de Camões ou de Vinícius. Poderiam até ser de Gregório de Mattos. O mal estava em terem sido copiados por um amigo de Vânia. De quem eram os versos? “De um poeta romano.” E desde quando ela gostava de versos? Ali havia mistério, com certeza.
Por que mentia? Por que aceitara a papelada? Talvez não imaginasse que o marido lesse um só verso. Ou, mesmo lendo, não percebesse seu teor. Ingênua! Chamava-o de burro e agia tão asnamente. Ou pusera em prática a teoria de que o esconderijo mais seguro é o guarda-roupa do chifrudo.
Humberto ainda quis exigir explicações de Vânia. Não, talvez não valesse a pena. Afinal, toda mulher é tentada com palavras e gestos. Mesmo as feias, ou as mais feias. O que dizer, então, de Vânia? Muitas vezes percebia os olhares ávidos dos homens, absortos à passagem dela. Sim, tudo nela chamava a atenção: o porte, as ancas, os cabelos lisos e castanhos, o rosto bem delineado, o jeito de olhar, falar, andar. Portanto, o tal amigo dos versos romanos devia ser apenas mais um tentador à espreita da bela presa.
Mas outros versos apareceram entre os objetos de Vânia, em suas bolsas, em gavetas. Com certeza escritos pelo amiguinho brasileiro, o tal Isaque, embora não houvesse neles indicação de autoria. Pois soavam bem atuais, diferentemente dos primeiros. Em vez de Vênus, vestais e quimeras, só uma mortal neles aparecia – Vânia. Como no “Soneto da paixão insana”. O cúmulo da indecência!
Ainda assim preferiu Humberto esperar. Aquilo não significava traição de sua mulher. Não podia acusá-la de nada. Talvez de receber versos de um dom-juan. Que é o mesmo que ouvir palavras de sedução na rua. E toda mulher as ouve. Até as surdas.
Pensou em falar aos irmãos. Ou apenas a um deles – Artur. Vez por outra trocavam idéias, confessavam pequenos pecados. Um confiava no outro. Desistiu da idéia. Artur poderia tomar alguma decisão precipitada. Talvez até agisse sozinho, com uso de violência. Melhor procurar um amigo, algum colega de farda. Seus familiares jamais saberiam a verdade. Lembrou-se de Fernandes. E o convidou para uma cervejada. Quem mais iria ao bar? Ninguém. Precisava fazer uma confidência.
Tomaram duas cervejas, e nada de Humberto contar o segredo. O outro chegou a se aborrecer. Se Humberto não confiava nele, por que fizera o convite?
A história terminou mal contada. Os personagens não se chamavam Vânia, Humberto e Isaque. De qualquer forma, havia um poeta que enviava versos a uma mulher casada. Aquilo só podia ser coisa de veado.
Não soube quantas cervejas tomou. Só voltou para casa tarde da noite. Vânia fingia estar adormecida. Humberto pôs-se a despi-la e ainda ela apenas resmungava, como sempre. Tudo fingimento dela. E ele gostava que fosse assim. Talvez o estranho desejo de possuí-la em sonho.
Como de outras vezes, ela disse que o amava muito e ele repetiu que adorava possuí-la. Repetiu também a ameaça: se soubesse de qualquer traição dela, matava-a. Vânia mais uma vez reafirmou fidelidade conjugal.
E estava mais acordada do que nunca.

(Continua)

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Vasto abismo - segunda parte (Nilto Maciel)



 






(Gravura de Rembrandt)

SEGUNDA PARTE

Humberto perguntou como ia o escritor. Vânia se fez de desentendida. A que escritor ele se referia? Na televisão passava um filme publicitário. A seguir passou outro. Ela se aborreceu. Havia propaganda em demasia. Queria ver logo a outra parte do drama.
Finalmente acabou o tempo dos comerciais e Las Vegas reapareceu na tela. Cassinos iluminados, homens e mulheres elegantes a jogar. Humberto e Vânia calaram-se.
Mesmo longe da biblioteca, vez por outra ela sentia cheiro de livro velho. E jurava mudar de função. Voltaria à máquina de escrever. Preferível passar o dia datilografando ofícios a andar fedendo a traça e mofo. Além do mais, aparecia cada tipo esquisito à procura de cada livro estranho!
Isaque talvez não fosse um tipo esquisito. Nem lembrava mais a primeira vez em que o vira. Quando se deu conta de sua presença, já ele havia passado talvez horas a mirá-la. “Hoje vim aqui só para te ver”. Sorriu, e lhe perguntou o nome. Procurava livros de autores antigos. De preferência gregos e romanos. Se houvesse uma seção assim... Havia, sim; ficava mais para o fundo.
Tantas vezes ele voltou, que ela não mais o esqueceu. Fazia perguntas sobre livros e sobre ela. Ia e vinha, namorava aquele ambiente de cheiro forte, perdia-se entre as estantes. Disse-lhe, com certo prazer íntimo, ser casada e mãe de dois meninos. Só não falou da idade. Se ele não perguntava, não tocaria no assunto. Se tivesse 30 ou mais, subtrairia 4 ou 5.
Isaque não disse logo ser escritor. Até brincou: “Sou um leitor inveterado, sem cura.” Ela também gostava de ler. Não autores antigos. Preferia os modernos. Lia desde menina. E até escrevera poesia. Agora lia menos. Dispunha de pouco tempo. Os filhos, a casa, o trabalho. De qualquer forma, ele queria dar a ela um de seus livros. “Você é escritor?”
Não teve coragem de levar para casa o livro ofertado por ele. Aquela dedicatória, se lida por Humberto, seria causa de briga. Chamava-a de flor e falava em amizade e admiração.
Falou de Isaque a algumas amigas. Estaria ele querendo envolvimento amoroso com ela? Ou apenas amizade? Uma delas, Joana, arregalou os olhos, quase entrou em pânico. Melhor dar um basta naquilo. Falar sério com ele. “Você não disse ser casada?” Dissera, sim. E mesmo assim ele continuou a atacar? Só podia ser um grande sem-vergonha. Cuidado, muito cuidado! Aquilo acabaria em tragédia! Bastava a história chegar aos ouvidos de Humberto.
Seguiu à risca os conselhos das amigas. Ao primeiro convite para saírem juntos disse “não”. Ele não insistiu, mas voltou nos dias seguintes à biblioteca. Vânia escondia-se, fugia dele. Passava horas em aflição, feito criança medrosa. Por que não enfrentá-lo?
Ocorreu, então, outro curto e áspero diálogo entre eles. Não desejava nenhuma amizade com Isaque. Nada de intimidades. Se não fosse possível conversarem como simples conhecidos um do outro, melhor ele sequer lhe dirigir a palavra. Como se nunca tivessem se conhecido.
Sabia ter sido ríspida, mal-educada. Talvez Isaque não merecesse aquele tratamento. Pois apresentava-se sempre muito amável. E poderia mesmo querer somente amizade.
Não, Joana tinha razão. Um homem não importuna uma mulher senão com intuitos amorosos. Claro que alguns contestam isso. E até essa contestação faz parte do jogo da conquista.
Além do mais, adorava Humberto. Não exatamente a pessoa, mas o macho. Com ele satisfazia-se plenamente na cama. Um homem ideal. Chegava a ser bruto, animalesco. Sobretudo após beber. Ameaçava-a de morte, caso ela o “traísse”.
Vânia não entendia o motivo das ameaças. Pois nunca dissera a Humberto nada como: “Não me traia, para não ser traído.” Pelo contrário, jurava amor e fidelidade até a morte. Não descumpriria o juramento prestado perante Deus.
E todos os domingos assistiam à missa. Desde crianças.
Pois exatamente ao regressarem da igreja, num domingo chuvoso, Humberto encontrou em casa umas “poesias imorais”. Dez ou mais folhas de papel. Entre as páginas de um velho romance. De certo Boter Wrigus. Presente de aniversário de Vânia, dado por uma amiga.
Humberto não conseguia ler nada. Só jornais. Lia os cadernos sobre esportes, boletins do Exército, folhetos da Igreja. Qualquer livro dava-lhe sono, preguiça, tédio. Folheava-o, lia uma frase aqui, outra ali, e nada lhe despertava interesse por aqueles pequenos objetos feitos de papel.
A curiosidade, ou a ociosidade, levou-o a folhear o romance de Boter Wrigus. Um dos maiores vendedores de livros do mundo. “Esse escritor é americano, meu bem?” Se não fosse americano, seria inglês, australiano, irlandês... De qualquer forma, um homem muito rico.
Retirou as folhas de papel de entre as do livro e leu um verso. Sentiu-se mais curioso. Aquilo cheirava a “porcaria”. Leu todo o primeiro poema. E passou a outros. Sim, um amontoado de bobagens. E quem as trouxera para dentro de seu lar? Talvez a doméstica. Sua mulher não seria capaz de ler tamanha imundície.
Ainda desejou rasgar as folhas, queimá-las, levá-las à lixeira. Só desistiu disso quando percebeu que as palavras Marcus Sallustius Secundus constavam em todas as folhas. Seria o autor das poesias?
Ao vê-lo às voltas com os versos, Vânia pensou em arranjar um bode expiatório que a livrasse de reprimendas ou mesmo agressões. E pôs-se a rir. Ele ergueu a mão que segurava as folhas: “Estou esperando uma explicação para isto.” Ela continuou rindo. Brincadeira de uma amiga. Aliás, não lera ainda uma só folha. Pois não devia ler mesmo. Pura imoralidade! E quem escrevera aquilo? Um poeta romano. Ele riu. Desde quando ela gostava de poesia? Se ainda fosse “poesia romântica”! Nem prostituta lia aquilo. Qual o nome da amiga? Joana não seria capaz de tanta baixeza.
Pressionada, Vânia acabou contando parte da verdade. Aquela papelada pertencia a um amigo. “E com que intenção ele lhe deu isto?”
As rusgas tornaram-se freqüentes. Ela vivia nervosa, agitada. E ora se sentia culpada, ora inocente. Via-se adúltera e mal conseguia olhar nos olhos de Humberto. Com remorsos, transformava-se em cozinheira, copeira, arrumadeira. Ele estranhava as atitudes dela. À noite ela o provocava, beijando-o, abraçando-o. E jurava a si mesma dar um ultimato a Isaque, no dia seguinte. Ou ele deixava de perseguí-la, ou ela contaria tudo a Fátima e Humberto.
Não, não diria nada nem à mulher de Isaque nem a seu marido. O tiro poderia sair pela culatra. Não acreditariam em sua versão. Humberto diria sempre que estupro só acontece com criança. Mulher adulta sabia se defender, se quisesse. Machista como o resto dos homens!
Nesses momentos sentia-se apenas vítima dos desejos de Isaque. Sem culpa e sem pecado. Inteiramente inocente. E jurava não cozinhar, não arrumar a casa, não lavar a louça. Deixar tudo por conta de Cristina. E, se Humberto não a solicitasse de noite, dormiria o melhor dos sonos.
Uma noite teve um sonho inusitado. Após ler os poemas de Salústio. Banhava-se numa fonte com outras ninfas. Súbito, de entre os arbustos, surgiam alguns faunos. Entre eles Isaque. Apavoradas, punham-se a correr. E assim terminava o sonho.
No dia seguinte ele a convidou para saírem juntos. Lembrou-se da perseguição noturna e disse-lhe não. Melhor afastarem-se um do outro. Se fossem solteiros, poderia ser diferente. E, sempre que o via aproximar-se da biblioteca, escondia-se, retirava-se. Contava com a ajuda, o socorro de Joana. “Ele chegou” – avisava. Logo Isaque percebeu o jogo de Vânia. E durante dias seguidos não apareceu. Já acreditava ter ele desistido dela, quando Isaque reapareceu. Só restava ameaçá-lo. Caso continuasse a perseguí-la, faria escândalo.
Parecia até brincadeira, jogo de esconde-esconde. Quando menos esperava, ele reaparecia. Se o aguardava, ele não dava sinal de vida. Ou Isaque tramava outras maneiras de se fazer presente. Como quando enviou ao endereço dela um envelope recheado de versos. Ao recebê-lo, das mãos de Humberto, sentiu um arrepio em toda a pele. Como se adivinhasse o nome do remetente. No entanto Isaque utilizou nome feminino – Quésia. Na verdade, um anagrama. “Quem mandou essa carta?” Vânia titubeou e terminou dizendo: “Uma amiga”. Apesar de não se lembrar de nenhuma Quésia.
Eram poemas do próprio Isaque. Todos escritos para Vânia. Um deles – “Soneto da paixão insana” – deixou-a profundamente comovida. Talvez pela declaração de amor.
Uma loucura aquela atitude de Isaque. E se Humberto lesse os versos? Melhor, pois, queimar toda a papelada. Quando, onde? Pois não se queimam cartas de amigas.

(Continua)

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Vasto abismo - primeira parte (Nilto Maciel)





















Apparent rari nautis in gurgite vasto.Virgílio, Eneida


Primeira parte


Durante mais de vinte anos, Isaque Paiva se imaginou um homem incomum, quase excepcional. Dias antes de morrer, porém, compreendeu quão vulgar havia sido sua vida. Mesmo enquanto durou aquela paixão tão censurada e tão repelida. Uma ligação perigosíssima, é certo, mas ainda assim vulgaríssima.
Acreditou-se, desde adolescente, fadado aos livros. Lia tudo, com sofreguidão. Enquanto seus irmãos brincavam na rua.
Aos 36 anos havia escrito e publicado seis livros. Porém uma enorme insatisfação o roía. Não passava de um principiante, um ilustre desconhecido. As seis edições tomavam conta de todas as brechas das estantes de sua casa. Além disso, não via mais qualidades em nenhuma das obras que escrevera. Tudo inutilidades.
A idéia de recomeçar, deixar o passado para trás, ser um novo Isaque, engendrar outro sonho conduziu-o aos antigos. E pôs-se a ler e reler Homero, Virgílio, Horácio, etc. Logo descobriu a imensa pobreza das traduções brasileiras da velha literatura, sobretudo a grega e a latina. As livrarias dispunham apenas dos livros mais conhecidos. Autores como Teócrito, Calímaco e Plauto não constavam sequer nos catálogos das editoras. Isso o levou a interessar-se por obras raras e autores esquecidos. Mas onde os encontrar? Talvez nas velhas bibliotecas.
Chegou a elaborar uma lista enorme de nomes de escritores antigos e esquecidos, assim como de suas principais obras. Entre eles os poetas Joaquim de Sousa, Mário da Silveira e Alf. Castro.
De posse de tantos nomes e títulos, Isaque bateu às portas da Biblioteca da Câmara. E num só dia fez duas descobertas maravilhosas: o secular Marcus Sallustius Secundus e a vintaneira Vânia Verbena.
O livro parecia não ter sido sequer manuseado alguma vez. Pois as folhas dobradas assim permaneciam. No entanto recebera capa dura e letras douradas: GURGITE VASTO – Marcus Sallustius Secundus.
A curiosidade de Isaque se aguçou ao perceber que não se tratava de tradução. Sim, tudo em latim. Embora a edição fosse inglesa e datasse de 1847. Na última folha havia até uma referência à recente publicação de O Morro dos Ventos Uivantes.
Tentou ler alguns versos. Não conseguiu entender quase nada. Seu latim não ia além dos aforismos mais divulgados: Abyssus abyssum invocat. Manus manum lavat. Verba volant, scripta manent. Et coetera.Com certeza não havia tradução portuguesa daquela obra. Não se lembrava sequer daquele nome. Havia, sim, outro Salústio, porém Caius Sallustius Crispus.
De qualquer forma, levaria o livro por empréstimo. Não poderia perder a oportunidade de “ler” aquela obra rara. Sim, rara. Talvez raríssima.
E dirigiu-se, com afobamento, a uma funcionária. Queria levar um livro. Quanto tempo poderia ficar com ele? E se não conseguisse ler o livro dentro do prazo?
Diante da moça assustada, de rosto sereno e belo, Isaque lembrou-se das ninfas e deusas da mitologia. Mas precisava sair logo dali, voltar para casa, folhear o livro, ler aqueles versos latinos. Noutro dia olharia com mais atenção para aqueles olhos tão doces. Não, nada de ninfas, nada de mitologias. Devia, sim, cuidar de sua literatura, de seus interesses de escritor. Poderia, por exemplo, reescrever tudo. Pelo menos os versos. Não, jamais conseguiria transformá-los em boa poesia. Obra da juventude. Alguns escritos há vinte anos. Quase um menino ainda.
Reconhecia, embora tardiamente, sua mediocridade. Seis livros medíocres! Uma vida inteira dedicada a escrever, acreditando-se um escritor talentoso. Vinte anos enganado. Enganando-se. Primeiro dizendo-se poeta. Depois contista e romancista. Por último crítico literário.
Procurou o velho dicionário de latim. Faltavam folhas, além das capas. Uma relíquia! Nem lembrava mais como e quando o adquirira. Melhor comprar outro. E por que não voltar à Biblioteca? Assim reveria a funcionária bonita.
Sentiu no peito uma pontada. Remorso. Ana não merecia um pai daqueles. E Fátima, tão boa, tão dedicada à casa, à filha, a ele mesmo, nunca deveria ter rivais.
Ora, não havia nada entre ele e a moça de biblioteca. Nem sabia o nome dela. Talvez tivesse um nome horrível. Geraldina, Raimunda, Salustiana.
E que mal havia em achar bonita uma mulher? E mesmo admirá-la? E até desejá-la? Quem se julgasse livre de tais “pecados” que lhe atirasse a primeira pedra.
Saiu então decidido a ir às livrarias. Compraria uma gramática e outro dicionário latim-português. Terminou, porém, indo logo à Biblioteca. E, ao cabo de uma hora de idas e vindas pelos corredores, colheu duas importantes informações: a moça chamava-se Vânia e era casada.
Ao ver Isaque, ela o reconheceu, pois sorriu e perguntou pelo “poeta romano”. Se já iniciara a leitura.
Nos dias seguintes ele voltou à biblioteca. Olhava as lombadas dos livros, folheava um ou outro e, ao final, se dirigia a Vânia.
Um dia ofereceu-lhe exemplar de seu livro As sete patas do monstro. Ela devia gostar de ler, pois trabalhava entre livros. Sim, adorava ler. Sobretudo romances.
Na primeira folha ele escreveu: “Para Vânia – uma flor em pessoa – com a amizade nascente e a admiração crescente de Isaque Paiva.”
Em casa e no banco dedicava horas seguidas a estudar latim. Fazia exercícios, declinava vocábulos, traduzia frases. Lembrava o tempo de estudante, menino ainda. Os colegas, o colégio, os estudos. O professor de latim, a exigir que os alunos decorassem tudo. Fábulas de Fedro, historinhas curtas e cheias de graça. Fame coacta vulpes alta in vinea... Trechos das catilinárias: Quosque tandem, Catilina, abutere nostra patientia? E também da guerra gaulesa de Júlio Cesar: Gallia omnis est divisa in tres partes...
Porém não conseguia tirar da cabeça a imagem da funcionária risonha. A vontade de revê-la arrastava-o de casa ou do banco para a rua, e desta para a biblioteca. E a vontade logo se fez necessidade. Precisava ver todo dia aquela criatura.
Mas o que diria ela? Com certeza já percebera o excesso de idas dele à biblioteca. E os outros? Já conhecia porteiros, ascensoristas, bibliotecárias. Melhor passar uns dias sem pôr os pés na Câmara. Podia xerografar o livro de Salústio, devolvê-lo e nunca mais ver aquela moça.
Xerografado o livro, Isaque tratou imediatamente de devolvê-lo à biblioteca. Sentiu até um alívio, como se retirasse um peso da cabeça, da consciência.
E pôs-se a pensar com persistência na hipótese de ter em mãos uma obra latina nunca traduzida para o português. Mas quem poderia tirar essa dúvida? Logicamente que especialistas em literatura latina, professores de latim, etc. E quem eram essas pessoas? Não se lembrava de conhecer uma só delas.
Escreveu cartas a alguns amigos escritores. Falou de Salústio e do livro. Suspeitava ter descoberto uma raridade. Não se referiu, no entanto, ao sonho de traduzi-lo.
Sim, se Gurgite vasto não tivesse tradução portuguesa, ele, Isaque Paiva, poderia se tornar um homem famoso. Por descobri-lo e por traduzi-lo.
A notícia do achado de Isaque logo se propagou pela cidade. Poucos, porém, lhe deram importância. Outros riram. Então já havia até descobridores de livros?! E quem seria esse tal de Isaque Paiva? Decerto algum impostor. Brincadeira de desocupado. Adrino Aragão chegou a declarar que tudo – Isaque, Salústio, livro –, tudo era obra de Nilto Maciel. Houve risos no bar Beirute. Emanuel Medeiros pediu até outra cerveja. “Essa é por conta do amigo Nilto Maciel.”
Nada, porém, afastava a imagem de Vânia do pensamento de Isaque. Se tentava ler os versos do romano, toda puella assumia as feições da moça. E a via no lugar de toda dea, confundia-a com Vênus. Se escrevia cartas, o nome dela teimava em aparecer no papel. Rememorava com exatidão os mais triviais gestos dela. Recapitulava todas as palavras ditas por ela.
Tais ruminações logo deixavam o leito do acontecido, do vivido, para conduzi-lo a caminhos imaginários. Da biblioteca saltava para as ruas. Destas para os parques. Destes para os bosques. E terminava príncipe encantado a beijar a bela adormecida.
Acordava-se, assustado. Para que tanta fantasia? E voltava à Câmara, a tal dia, àquelas palavras tão cheias de graça, àquele olhar tão misterioso.
Não, não devia ficar ruminando o passado. E muito menos sonhando encontros. Devia, sim, procurá-la, convidá-la para tomarem um chope. Se ela dissesse não, insistiria. Persistindo a recusa, só lhe restaria desistir de tudo. E voltar a Salústio, aos romanos, ao latim, à velha e destruída Roma.
Afinal encontrara um novo ruma na vida. E não devia evitá-lo. Ao contrário, seguí-lo apaixonadamente. Pois perdera vinte anos de vida, a escrever uma literatura de quinta categoria. Iludido, certo de ter versos eternos e histórias modelares.
Lembrava-se perfeitamente da emoção sentida quando da publicação do primeiro livro. Título latino, a evidenciar erudição. Sentira-se um novo gênio. Revelação no gênero conto. Tivera até a breve ilusão de um dia viver de literatura. Tornar-se novo Jorge Amado. Porém o livro não chegou sequer aos jornais. A pequena tiragem teria encalhado em três ou quatro livrarias, não tivesse Isaque oferecido a parentes e amigos a maior parte dos exemplares.
Procurava fugir dessas recordações. Como se fossem aves agourentas. Espantava-as, irritado. Aliás, só queria mesmo o presente. Nada de passado. A não ser o dos livros. E por falar nisso, quem teria sido aquele poeta Salústio? Pois nenhuma enciclopédia o citava. O único Sallustius célebre fora historiador, e não poeta.
Se Marcos Salústio Segundo não tivesse existido, quem teria escrito Gurgite vasto? Ora, aquele nome poderia ser um pseudônimo – brincou Guido Heleno. E quem garantia ter sido escrito ao tempo de Roma Antiga? Por que os versos não podiam ser de muito depois? Mesmo do século 19? Talvez de algum inglês extravagante.
Não, Isaque não queria simples hipóteses. Em algum livro deveriam constar referências ao seu Salústio. E pôs-se a consultar Histórias de Roma, biografias de escritores latinos, ensaios, estudos, tudo sobre a literatura romana.
Diariamente voltava à Biblioteca da Câmara. E conversava com Vânia. Falavam dos livros, do trabalho dela, da pesquisa dele, disso e daquilo.
O primeiro “não” ele ouviu dela numa tarde muito quente. Desapontado, instalou-se numa cadeira de bar e só se retirou quase à meia-noite. Bebeu algumas cervejas e rabiscou versos sobre versos.
O “não”, pensando bem, poderia ter sido um “sim”. Questão de som. Pois ela o disse a rir e sem qualquer sombra de hostilidade.
No dia seguinte, porém, o “não” se confirmou em toda a sua plenitude. Pois Vânia mal cumprimentou Isaque. E até, em dado momento, deixou a mesa onde trabalhava, para só voltar muito mais tarde, quando confirmou ter Isaque ido embora.
Sentira-se ofendida. Por ser casada, comprometida com um homem. Se aceitasse o convite, estaria maculando sua própria imagem. Como se jogasse fezes no espelho onde se mirasse.
Ele tentou reaproximar-se dela. Nada, porém, fazia Vânia mudar de idéia. Melhor Isaque afastar-se definitivamente dela. Não a procurasse mais. Como se nunca tivessem se conhecido.
Desesperado, ele bebia e lia poesia todo dia. Releu em duas semanas alguns livros. Sobretudo os poetas líricos. Fez uma seleção dos versos que julgou mais adequados a seu estado de espírito. Tirou cópia deles e os enviou, pelo correio, a Vânia. Ao mesmo tempo se pôs a também escrever poesia. Primeiro aventurou-se pelo latim. Mas logo desistiu dele. Jamais realizaria tamanho intento.
É desse período o “Soneto da paixão insana”:

Este é o soneto da total insânia,
da mais completa, mais total loucura.
Nele o amor não vem da antiga Albânia,
não tem segredos, muito menos jura.

O amante não nasceu na Mauritânia,
sequer andava em busca de aventura.
Não se chamava a bela moça Jânia,
talvez não fosse muito bela e pura.

Essa paixão assim mediterrânea
é faca que maltrata, que perfura,
amor que pode dar em desventura.

O nome dela é, meus leitores, Vânia,
e esta paixão é tão terrível e dura
que até na morte não teria cura.

Enquanto isso, lia e relia autores latinos e tentava traduzir o Gurgite Vasto. Logo fez outra importante descoberta: Sallustius parodiava as poesias de seus compatriotas.
Isaque conhecia pouco a literatura latina. Talvez meia dúzia de livros: O asno de ouro, umas fábulas de Fedro, odes de Horácio, A arte de amar, Eneida, etc. Lidos ao longo dos anos, em traduções nem sempre elogiadas. Agora, porém, queria mais. E de uma só vez levou para casa quase trinta autores, de Apuleio a Virgílio. Uns em latim, outros em português.
A descoberta de Isaque se deu por acaso. Havia lido durante horas umas epigramas de Marcial. Chegou a fazer observações à margem das folhas do livro e até decorou uma das poesias. Em seguida voltou a Salústio e defrontou com uma epigrama curiosa. Salvo engano, já a conhecia. E pôs-se a cismar. Daí a pouco correu de volta a Marcus Valerius Martialis. Sim, uma epigrama imitava outra.
A partir de então se dedicou a um duplo trabalho: traduzir o livro de Sallustius e esquadrinhar as obras de outros escritores. Até encontrar nestes peças parecidas com as daquele.
No entanto a vespa da paixão não deixou de ferroar Isaque. Precisava rever Vânia. E pedir-lhe explicações. Afinal, não eram adolescentes. Se ela recusava uma aventura, por que não serem amigos? Para que fazerem-se inimigos?
Sim, iria procurá-la. No máximo ela diria ser casada, direita, e gostar muito do marido. Com mais otimismo, Isaque poderia ouvir uma confissão fundamental: ela jamais namorara outro homem, após o casamento, porém não gostava do esposo. Apenas o suportava. E então estaria aberta uma porta para a aventura. Tudo dependeria dele, de sua habilidade de cortejador.
Munido de tais raciocínios, dirigiu-se à Câmara. Na bagagem levou ainda uma relação de títulos de obras latinas. Ponto de partida para chegar à moça.
Antes de alcançar a biblioteca, encontrou uma amiga de Vânia. Haviam se conhecido lá mesmo. Por que não voltara mais? Desculpou-se: trabalhando muito, sem tempo para os livros.
O nome de Vânia logo veio à baila. Cheia de problemas. Pensando até em pedir remoção para outra seção. Seria, pois, de boa prudência que Isaque não visitasse tão cedo a biblioteca.
E Joana o chamou a um canto. Vânia andava apavorada. Pois, se Humberto descobrisse “tudo”, uma tragédia poderia ocorrer.
Ainda fingiu não estar entendendo nada. Não conhecia nenhum Humberto. A moça sorriu. Sabia de todos os detalhes do caso. Por pouco Humberto não vira as poesias enviadas a sua esposa por Isaque. Tomasse muito cuidado. Não repetisse tamanha tolice.
Num primeiro momento sentiu enorme pavor. Viu-se morto, um tiro no coração, estendido no meio da rua. E a multidão a correr, gritar. Não, Vânia não devia ter contado nada ao marido. E nem contaria.
Procurou um barzinho. Precisava se acalmar. Nada de apavoramento. Contudo não enviaria outros versos a ela. Não cometeria mais esse pecado juvenil. Aliás, aquela poesia melosa estava fora de moda. Nenhum homem nestes tempos de “sexo explícito” seria capaz de seduzir mulher com versos românticos. Coisa ultrapassada. O tempo das serenatas há muito passara.
Por que não levar a Vânia as poesias eróticas de Salústio Segundo? Pois todos os poemas do romano tangiam a lira de Eros. Pelo menos aqueles já traduzidos. Como a paródia do “Anni tempora”, de Ovídio.
Com certeza ela não se escandalizaria. Até porque já devia ter lido muita porcaria. Sobretudo nos romances norte-americanos. Pois adorava esse tipo de literatura. Apesar de trabalhar junto a livros tão diferentes disso.
Isaque não a censurou por ler aquelas histórias feitas de crimes, espionagem e sexo. Apenas riu e prometeu-lhe seus próprios livros. Ela iria gostar muito de O punhal de Brutus – brincou. Devia ser um “romance emocionante” – ela dissera, emocionada.
Não conseguia vender seus livros. A não ser nas sessões de autógrafo. Vinte a trinta pessoas, todas parentes e amigos. Depois a corrida atrás dos leitores. Deixava dez exemplares em cada livraria da cidade. O resto levava para casa, enviava a escritores desconhecidos ou ofertava.
Acusam-no de amadorismo. Escritor não devia dar livros. Nem pagar para ser editado. Antes exigir pagamento de direitos autorais e deixar por conta dos livreiros a comercialização dos livros. O leitor – diziam – não respeita escritor amador. Não respeita e não lê.
“De uma forma ou de outra, sou escritor” – objetava Isaque. E ria dos “escritores eternamente inéditos”.
Porém ria sem convicção. Sua obra talvez não merecesse mesmo ser publicada e lida. Daí a decisão de não mais escrever. Pelo menos durante um ou dois anos. E se dedicar à leitura dos clássicos.
Tão devotado andava a ler os latinos e a traduzir Salústio que chegou a sonhar escrevendo versos em latim.
Uma feita acordou em pleno sonho. Pulou da cama, agarrou caneta e papel, e anotou – Odi et amo: quare id faciam, fortasse requiris.
Imaginava ter escrito o verso para Vânia. Mas logo percebeu o engano – Catulo escrevera a epigrama para Lésbia.
Sonhava também vivendo no tempo dos Césares. Num desses sonhos procurava Marcus Sallustius Secundus. Andava pelas vias de Roma, a perguntar pelo poeta. Ninguém conhecia tal cidadão. Cansado de vagar pelas colinas, terminava o dia no interior do Coliseu. Súbito ouvia um rugido de leão. E acordou.
Enquanto traduzia, Isaque tentava esboçar uma biografia de Salústio. Mas como fazê-lo, se as enciclopédias nenhuma referência faziam do poeta?
A primeira pergunta seria: em que tempo ele vivera? Sua própria obra poderia dar a resposta. Bastava encontrar menção a nomes de imperadores, cônsules, tribunos, etc. Ou de poetas, historiadores, filósofos, etc. Para começar, relacionou alguns nomes, bem como os respectivos anos de nascimento e morte.
Descobriu, então, num dos poemas de Salústio, alusão a Lucio Apuleio. Logo, teria sido, no mínimo, contemporâneo deste. Ou seja, poderia ter vivido entre os anos 125 e 170.
Antes descobrira semelhanças entre algumas epigramas de Salústio e de Marcial. Como este viveu até 104 d.C., aquele havia sido posterior a Catulo, Estácio, Horácio, Ovídio, Plauto, Terêncio, Virgílio, e outros poetas.
Assim, Salústio Segundo teria nascido durante o governo do imperador Antonino e morrido sob Sétimo Severo. Suspeitou Isaque haver o grande parodista cometido suicídio.
Satisfeito com seus achados, escreveu a alguns amigos e telefonou a outros. Logo a notícia se espalhou. Muitos escritores, porém, novamente não lhe deram crédito. Jair Vitória riu. Que interesse podia haver naquilo? Afinal, latim era língua morta. Guido Heleno fez trocadilhos, inventou piadas: Salústio Segundo vivera até demais, pois chegara a Sétimo Severo. Outros dois, no entanto, deram importância à nova. Nilto Maciel e Salomão Sousa. Este quis até conhecer Isaque Paiva: “Apresente-me a ele, Nilto.”
Entretanto Isaque só queria rever Vânia. E comunicar-lhe o resultado de seus estudos. Aproveitaria a ocasião para mostrar-lhe os poemas já traduzidos. Mas como seria recebido?
Encontraram-se à saída da Câmara. Ela assustou-se e apressou o passo. Ele precisava falar-lhe. Só um minutinho. Ela ainda opôs resistência. Não queria mais conversa com ele. Seu casamento corria riscos. Humberto seria capaz de matá-los.
Isaque mudou de assunto. Só desejava falar-lhe do livro de Sallustius. E pôs-se a falar. Sentia-se agora um homem singular. Ninguém antes havia traduzido ao português aqueles poemas. Além do mais, o romano era completamente desconhecido. Nem as enciclopédias o citavam. E tudo graças a ela. “Por quê graças a mim?” Não fosse ela, jamais teria achado aquela raridade. Pois foram seus olhos que o prenderam àquela biblioteca. Iria publicar o livro em português. E o dedicaria a ela.
Ao despedirem-se, ofereceu-lhe cópia dos poemas já traduzidos. Lesse e desse opinião. Ela disse não estar interessada em ler poesia. Mas enfiou na bolsa a papelada. E saiu, quase a correr. Como que petrificado, ele se deixou a olhar para aquele vulto serpeante e lesto, que ora sumia, ora reaparecia, no amplo estacionamento.
Quando se deu conta da solidão em que se achava, Isaque pensava nas suas memórias. No projeto de escrevê-las. Há mais de ano recolhia documentos pessoais e de familiares. E fazia anotações. Sobretudo de datas e fatos importantes. Como o seu ingresso na Universidade. O agitado 1967. As grandes passeatas, jornalecos revolucionários.
No entanto só lembrava os nomes de dois ou três colegas de Faculdade. Recordava, sim, as feições de quase todos. E alguns fatos do cotidiano. Os livros, os namoros, uma colega bonita chamada Alice. A vontade de aproximar-se dela, atraí-la para si. Chegaram a estar a sós na sala de aula. Ela, porém, não o deixou abrir a boca. Falou o tempo todo, talvez meia hora, do Camarada Mao, da Guerra Popular, da necessidade da luta armada...
À noite, Isaque escreveu um conto. Intitulou-o “A camarada”. Uma estudante maoísta chamada Célia, que amava um poeta chamado Basílio. Esse conto está no seu primeiro livro, editado em 1971.
A maravilhosa Alice ele nunca mais a viu. Disseram-lhe ter desaparecido ainda em 1970.
Quando recordava pessoas já mortas, Isaque se deprimia e pensava em desistir de escrever as memórias. Melhor ler os clássicos. Até que Salústio Segundo apareceu e o fez esquecer os pesadelos do passado: “Vivamus, mea Julia, atque amemus...”
A quem teria Sallustius amado? Descobriu Isaque alguns nomes de mulher nos versos do poeta. O mais citado talvez seja Julia. Há, porém, ainda Justina, Livia e Lucila.
Julia teria sido amante do Imperador Cômodo. Pois um dos poemas de Salústio termina assim: “Amada minha, que teu senhor te esqueça e nunca mais te incomode.”
Uma de suas mais bem realizadas paródias foi escrita a partir do famoso poema que Catulo dedicou a sua amada:
Vivamus, mea Lesbia, atque amemus,
rumoresque senum severiorum...

Quase toda a poesia de Salústio fala de amor. Daí parodiar poetas que dedicaram muito de sua arte a Cupido. Há até um pequeno poema cujo título copia o do notável Ars Amandi de Ovídio.
Outras vezes Salústio simplesmente utilizava provérbios para intitular seus poemas. Como Amor tussisque non celantur (Não se pode esconder o amor e a tosse). Ou Nit transit amantes (Nada escapa aos amantes).
Um dos poemas satíricos do parodista intitula-se Rerum novarum. Fala de escravos e senhores. Para Isaque ocorreu mera coincidência ao haver Leão XIII dado o mesmo título à sua famosa encíclica.
O escritor Guido Heleno dava explicação para a “coincidência”: Salústio vivera após 1891. Seu verdadeiro nome poderia ser Isaac, Isaque ou mesmo Nilto.
Ao tomar conhecimentos da pilhéria, Isaque Paiva se aborreceu. Arrancaria a peruca de Guido, em pleno Beirute, num sábado à noite.
Zangado ainda, dirigiu-se à Câmara. Precisava desabafar urgentemente. E só Vânia lhe servia de confidente.
Ela riu do chiste de Guido. Devia ser uma pessoa muito engraçada. E os poemas, lera? Sim, pareciam bem escritos. E bem traduzidos. Parabéns pela tradução!
Conversavam animadamente, quando apareceu Humberto. Fora buscá-la de carro. Saíra mais cedo do quartel. Vânia apresentou um ao outro, meio assustada. “Isaque é um grande escritor”. Humberto apertou, com firmeza, a mão do rival. E perguntou se o expediente já encerrara. Isaque alegou estar apressado, e retirou-se da sala, quase a correr.

(Continua)

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Os livros proibidos do sótão (Viegas Fernandes da Costa*)




“Ouvir minha dona sempre ler a Bíblia em voz alta despertou minha curiosidade em aprender. (...) Num período de tempo incrivelmente curto, com seu generoso auxílio, dominei o alfabeto e consegui soletrar palavras de três ou quatro letras. Meu senhor proibiu-a de me dar mais instrução... [mas] a determinação que ele expressou em me manter na ignorância apenas me deixou mais decidido a buscar compreensão. No aprendizado da leitura, portanto, não sei se devo mais à oposição de meu senhor ou ao generoso auxílio de minha amável senhora.”
Frederick Douglass (1)