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quinta-feira, 24 de abril de 2008

Pietá (Viegas Fernandes da Costa)




N’“O Carteiro e o Poeta”, de Michael Radford, faz-se verso o som do vento nos rochedos, “as tristes redes do meu pai”. Em “Powaqqatsi”, Godfrey Reggio nos mostra a Pietá de carne e lama escalando a mina, a cabeça rachada pela pedra. A vida corre assim, entre bestas e amantes, como entender? A mão que planta a terra verga a planta, ceifa o caule, suga o sumo: há uma bandeira no alto do Himalaia, tremula onde ninguém vê, por agora; amanhã tremula um farrapo. Ouço, no entanto, os sinos na torre, os gritos da feira, os uivos dos cães. 10.02.1960 – 23.03.2008: está resumida uma vida, e o rosto na fotografia me sorri a sentença de que fujo. Gravo a eternidade em papel, em placas de bronze, em suportes digitais, e descanso para reler a fábula de La Fontaine: a cigarra, as formigas, e a promessa da fome no inverno; com que direito traumatizam crianças com La Fontaine? Hás de ser formiga, e assim não passas fome! Mentira, porque a função da formiga é dar de comer à rainha, e morrer! Mas esta noite não é cáustica não: retorno a velha poltrona que reinava no sótão do meu avô, às mãos o livro de Lobato e sua Emília. Como seria uma vida de sítio? – matutava. Trepar em árvores, banhos de rio, um Barnabé habitando as margens. O doce torpor de rememorar as noites de livros no sótão do meu avô, o adulto que não chegava em mim. Era o tempo em que ainda havia pés dispostos a correr, a chutar uma bola, a embrenhar-se nos matos da vizinhança. Hoje não há mais pés, tampouco há muita mão, desta resta muito pouco: uma sombra de dedos, uma palma sem alma. Suspiro! O medo de ser abandonado criança à porta da escola, no morrer da tarde: tic tac tic tac tuntum tuntum, e de repente a figura do pai que despontava na curva, o sorriso no rosto. Assim faz-se verso o tempo no sótão, o passeio entre os mortos, as lápides, os epitáfios. Faz-se verso o medo dos tantos trovões que preenchiam os verões e suas tempestades nas férias escolares. E isto que agora se faz verso, era então emoção e idílio. Mas cresceram-me os olhos, e por isso sei da Pietá de carne e lama, sei também de outras Pietás: as de carne e chama, as de fome e ossos, as de pedra vulgar. Sei das Pietás que se arrastam nas sarjetas e pedem esmolas, das Pietás que preenchem de buracos seus peitos tão parcos, e de tantas Pietás que o cinzel e o formão não cansam de compor. Mas no mosteiro persistem as rezas, e nos terreiros e nas capelas. Melhor assim. Ao fim estamos todos parindo um grande poema, um grande e único poema que dirá do vento nos rochedos, do eclipse lunar. É só o que nos resta.

Blumenau, 20 de abril de 2008.

© Viegas Fernandes da Costa, autor de “Sob a Luz do Farol” (2005) e “De Espantalhos e Pedras Também se Faz um Poema” (2008). Site: http://viegasdacosta.blogspot.com/
Permitida a reprodução desde que citado o autor e o texto mantido na íntegra.
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