(Jorge Pieiro)
Na avidez de converter em literatura quase tudo, projetei transformar em personagens alguns amigos escritores. Não porque eles sejam pitorescos ou modelares. Podem até ser. Eu, no entanto, não desenvolvi a capacidade de enxergar o fundo da alma deles. Ficaram apenas as aparências. Por outro lado, casmurro como sou, não me aproximei mais das pessoas. Permaneci ao largo, às vezes sem sequer as ouvir. Em razão disso, senti-me impelido a imaginá-las.
Uma delas é Jorge Pieiro. Primeiro me falaram dele. Não sei quem nem quando. Certamente ele me escreveu cartas. E se apresentou. Deve ter sido em julho de 1991. Pois é deste tempo as dedicatórias de Ofícios de desdita, O tangedor e Fragmentos de Panaplo. Alguns anos após sua estréia, ocorrida em 1987. Já não se sentia um principiante, portanto. Talvez se sentisse importante. Sobretudo porque quem o apresentou ao mundo literário chamavam de Moreira Campos. Oh! As ousadias dos outros! Eu nunca tive essas ousadias. Chegar a Moreira Campos me levaria alguns anos de relutância. E somente depois de publicado. Jamais me passou pela cabeça enviar ao grande contista (ou a outro figurão) uns originais, para avaliação. Eu nunca tive essas ousadias. Talvez por medo de ser reprovado logo na primeira prova. Mas Pieiro teve.
Certa tarde, em Aracati, num auditório repleto de adolescentes e alguns escritores de Fortaleza, Jorge fez uma declaração retumbante: Após ler Alencar, Machado, Eça e outros cardeais da literatura de língua portuguesa, chegara à conclusão de que também ele poderia escrever. E alcançar o cardinalato literário. Por que não? E se pôs a escrever. Sentiu-se satisfeito. Se não chegava a ser como Machado ou os outros (quem sabe, um dia chegaria), pelo menos conseguia escrever como queria. Após a preleção, anunciou a leitura de um conto. E leu “Meu tio e eu”. Que começa assim: “O tio era magrinho. Contava nos dedos a idade, brincadeira. Tantos dedos eram poucos para tanta. Tinha a pele muito pálida e um gênio danado. Era dele de quem eu gostava. Muito mais que dos outros treze. Eu sabia que ele tinha visões. Talvez por isso julgavam que ele fosse doido. Quando chovia, ele corria comigo pela rua, na lama. Gritava e ninguém agüentava os gritos.” A platéia atenta, calada, suspirosa: “Cresci e crescia cada vez mais. Até que um dia, o tio me chamou. – Agora vou ser Deus pra sempre! Ele riu e se engoliu, como um novelo. Naquela hora, senti que o novelo tinha se enganchado na minha garganta. Eu achei que fosse ele. A alma dele. A vida dele. Não sei. Meus outros treze tios suspiraram aliviados.” E terminou assim: “Meus outros treze tios quando souberam, rasgaram as peles dos rostos. Eram mesmo umas máscaras! Tentaram me castigar, mas não puderam mais. Eu já era grande. Aí, dessa vez, foram eles que choraram. Sentiram um gosto novo de arame farpado na garganta.” Ao A sala se encheu de aplausos e algum choro. Jovens comovidas. E os garotos terão se comovido? Por que não? Quem não se comove ao ler (ou ouvir) uma história como aquela?
Jorge fala (e pratica) essas ousadias com a maior desenvoltura, a rir. Talvez para rir antes que riam do que diz. É um homem risonho. Brincalhão. E de muita presença de espírito. Tem sempre na ponta da língua uma resposta. Não é daqueles que engolem a língua, mastigam saliva, se engasgam, ao serem inquiridos ou estimulados a falar. Por que você escreve assim? Porque quero e porque só sei escrever assim.
Certa noite, em Brasília, me telefonaram. Aqui é Jorge Pieiro. Eu não o conhecia pessoalmente. Como está Fortaleza? Bem suja, mas estou em Brasília. Ora, vamos nos encontrar, Pieiro. Não tardou, sapecou o que queria: hospedar-se em meu apartamento. Achei a proposta o cúmulo da ousadia, mas contive o susto. Só quero uma cama e um banheiro. Fui ao encontro dele, pusemos as malas e os cacarecos dele no carro (já me esperava na calçada, talvez com vergonha da pobreza da quitinete onde dormira por uns dias) e partimos para o novo destino dele. Eu acordava, e nada de Jorge. Tinha ido trabalhar. Almoçava, e nada de Jorge. À noite íamos aos bares, onde escritores se reuniam. Ele contava piadas, sorria, gargalhava, batia das costas dos ilustres intelectuais desconhecidos dele, como Anderson Braga Horta, Antonio Carlos Osório, Fernando Mendes Viana, poetas da idade do ouro. E bebia um bocado. Por volta da meia-noite se aquietava: vamos, Nilto, que preciso acordar cedo. Não ia dormir, no entanto. Lia e escrevia até altas horas.
Era o mês de junho. Nos colégios, festas juninas, toda noite. A uma delas levei-o. Tomou quentão, comeu salsichão assado e dançou com minha filha Aretusa, de seis anos. Era 1996. Comprei para ela uma espada de plástico. Fazia parte da festa. Sentamo-nos a um lado e ele iniciou uma encenação horripilante: meteu entre um braço e o peito a espada, como se a enfiasse no coração. Aretusa se assustou, a princípio, mas, como ele risse e não tombasse, nem sangue nenhum jorrasse de seu peito, ela sorriu e o abraçou.
Voltei a morar em Fortaleza em 2002. De lá para cá (2009) quase não o vi. Mas sempre me lembro de suas ousadias e, vez por outra, releio seus contemas ousadíssimos: “Ella, quero andar com você pelas ruas. Vamos? Não posso, bobo. Você é um escritor... Por que não? Você inventa...” (“Epílogo”, de A grande casca do s).
E digo cá comigo: que ousadia!
Fortaleza, 5 de novembro de 2009.
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