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sábado, 27 de fevereiro de 2010

Balada para Fortaleza (Henrique Marques-Samyn)

(Impressões de viagem - julho de 2007)



Depois de conhecer-te, o olhar mais nada


encontra como outrora: a claridade


que emanas cada coisa renovada


já torna – soberana és, em verdade,


cidade-luz, serena e ensolarada.


Teu céu esplende em límpida beleza:


louvando-te ofereço esta balada –


cidade iluminada: Fortaleza!






Do Pajeú nasceste, assinalada


em teu seio a luzente majestade;


mesmo se és porventura maltratada


por maus senhores, vibra esta vontade


mais forte em ti, brava mulher dourada.


Teu mar esplende em límpida beleza,


à luz da lua, na alta madrugada –


cidade iluminada: Fortaleza!






Por que deuses assim foste forjada


com tal cuidado, formosa cidade


do Mucuripe, da Caranquejada,


de que te orgulhas, rútila em vaidade?


Por séculos serás ainda louvada:


teu sol esplende em límpida beleza,


o sol que nos teus braços fez morada –


cidade iluminada: Fortaleza!
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sábado, 20 de fevereiro de 2010

“Lama e folhas”, de Moreira Campos: Obra-prima (Nilto Maciel)



Iniciou-se Moreira Campos (1914-1994) no mundo literário com o volume Vidas marginais (Fortaleza: Edições Clã, 1949), composto de doze peças ficcionais: “Lama e folhas”, “Náufragos”, “Vigília”, “Suor e lágrimas”, “Esmagados”, “Varela”, “Soldado da borracha”, “Coração alado”, “Dona Adalgisa”, “Dúvida”, “Sugestão do silêncio” e “Vidas marginais”. Entretanto, em 1947, um deles, “Coração alado”, foi incluído por Graciliano Ramos em Contos e novelas (Norte e Nordeste). É possível que os outros onze também estivessem prontos. Ou bem antes daquele ano.

Carnaval ou futebol? (Francisco Miguel de Moura*)




Meu ópio é a literatura. Mas, falemos agora de outros. No sábado passado não saiu meu artigo, neste jornal**. Atribuo a que a pauta estivesse cheia de comentários sobre o Carnaval e a minha crônica referia outro assunto. Não importa que este meu escrito venha a ser publicado depois da festa mais popular do Brasil – quando se estabelece um novo Reinado, o do Rei Momo. E todo mundo cai na folia. Afinal de contas, ninguém é de ferro para trabalhar o ano inteiro e não ter nem isto: 3 dias de Carnaval.

Sou mais cronista que articulista, e não apenas para elogiar ou criticar. Tenho vários tipos de leitores. Observando bem, digo que o ano do Brasil só começa depois da Semana Santa. Por quê? Ora... Janeiro é o rescaldo do Natal, e ainda estamos na Festa da Confraternização Universal (Festa de Ano Novo). Depois vêm as Festas de Reis com suas lapinhas e reisados onde ainda existem e noutros lugares com o bumba-meu-boi, tudo confirmando a religiosidade do povo brasileiro. Fevereiro já é o mês do Carnaval. E ai de quem dele não gostar! Vai mofar sentado num sofá, vendo-o pela televisão (pois não há outros programas) ou sai para ver os blocos que passam na rua, os carros de som que estouram nossos ouvidos e outras coisas do tipo. Sem tevê, temos o rádio, quase igual à tevê. Há lugares, hoje, onde o Carnaval continua quase o ano inteiro com nomes derivados do estado ou da cidade. E a música popular faz sua festa, claro. Pois Carnaval sem música não existe. Março! Bem, aí chega a Semana Santa, lá vem o sentimento religioso tomar conta de todas as ações do povo e do não-povo.

Depois disto, tome futebol o ano inteiro. Tem gente que torce por uma porrada de times: um em São Paulo, outro no Rio, mais outro do seu estado, e até do seu município onde nasceu ou mora. Já existem animados campeonatos municipais. Mas, como a maioria dos intelectuais, eu não gosto de futebol, e não vou dizer que gosto somente para agradar essa maioria que não lê, não escreve, não sabe o que é arte, nem mesmo no futebol. Quando o futebol é arte todo artista ou amante da boa arte gosta. Aos jogos decisivos de grandes campeonatos, muitos assistem: Copa do Mundo e Campeonato Brasileiro, etc. Mas assistir a toda partidazinha de pé-de-poeira de todo interiorzinho já chega a ser tolice.

E a gente tem que gostar de Carnaval ou de Futebol?

Não sei, acho que não. Que me lembre, quando era jovem, na cidade de Picos, brinquei, no Clube, uns três carnavais: No primeiro, peguei um fora de uma mocinha, irmã de minha colega. Esta colega bem que queria namorar comigo, mas eu teimava. Só queria a irmã mais nova. No segundo, tinha namorada. No último, já era casado recente. Se brinquei outros Carnavais “seriamente” não me lembro. Sei que naqueles tempos a gente ainda usava o tal “lança-perfume”, droga ainda não proibida. Assim, não posso dizer que gosto de Carnaval. Mas, num passado já bem distante, me perguntaram:

– De que você mais gosta, de Futebol ou Carnaval?

E eu, pensando acertadamente, respondi:

– Muito fácil! Carnaval só são três dias e Futebol é o ano inteiro.

Claro que ainda optaria pelo Carnaval. Mas, já começo a viver noutro mundo. Já existem carnavais quase o ano inteiro, no Brasil! Arre! Assim já não é divertimento, é trabalho.

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*Francisco Miguel de Moura – Escritor, membro da Academia Piauiense de Letras (APL) e da Associação Internacional de Escritores (IWA-sigla em inglês), Toledo, OH, Estados Unidos.
** Refere-se o cronista ao jornal em que costuma publicar crônicas.

E-mail: franciscomigueldemoura@superig.com.br

WEB: http://cirandinhapiaui.blogspot.com

http://abodegadocamelo.blogspot.com

http://franciscomigueldemoura.blogspot.com
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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Paixão (Poema de Pedro Du Bois)



Apaixonei-me pela luz e a persegui

em beira mares, tive com a areia

atritos indesejáveis: a luz

e os pés molhados; perdi

a batalha, meu refúgio é o escuro

vão da escada, onde guardo

tralhas desconsideradas: rabisco

a poeira com palavras versejadas:

poderia anotar os dias.
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quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Carlos Vazconcelos: Próximo dos modelos (Nilto Maciel)



O début de Carlos Roberto Vazconcelos no universo dos livros se deu com Mundo dos vivos (Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2008), reunião de 32 peças curtas de ficção. O título é vulgar, o que não quer dizer quase nada, pois muitos títulos pomposos, esdrúxulos e mesmo poéticos escondem apenas lixo, rebotalho. Vulgar porque está até nos ditados: “o mundo é dos vivos”. Entretanto, como explica o autor em nota, “o mundo dos vivos é um assombro”. Seja como for, seria preferível o título de uma das narrativas, como “A inescrutável face da morte” e “Sem vento, à deriva”. Mas gosto não se discute, como diz outro ditado.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

A nova literatura angolana (Adelto Gonçalves*)



I
Il giorno in cui Paperino si è fatto per la prima volta Paperina e altri racconti: 12 storie quasi post-moderne (O dia em que o Pato Donald comeu pela primeira vez a Margarida e outros contos: 12 histórias quase pós-modernas), do angolano João Melo (1955), é o quarto volume da coleção Letteratura Luso-Afro-Brasiliana que a Morlacchi Editore, de Perugia, Itália, vem publicando sob a direção do professor Brunelo Natale De Cusatis, responsável pela Cátedra de Literatura Portuguesa e Brasileira e Língua Portuguesa e Brasileira da Universidade de Perúgia, com o apoio do Instituto Camões e da Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas, de Portugal, em edição bilíngüe italiano-português.
O objetivo da coleção, segundo De Cusatis, é dar a conhecer ao público italiano a obra poética e narrativa lusófona, com atenção particular à última geração que é pouco ou nada conhecida na Itália. Até agora já foram publicados os livros Frontiere perdute, racconti per viaggiare, do angolano José Eduardo Agualusa, Il caso del martello, do brasileiro José Clemente Pozenato, e Buona notte, signor Soares, do português Mário Cláudio. Com publicação prevista para este ano está Racconti, de Sérgio Faraco. Entre os brasileiros, estão dois gaúchos (Pozenato e Faraco), em razão do interesse que pode despertar naquele país a literatura produzida numa região marcada pela forte presença de imigrantes italianos, especialmente do Vêneto.
Com apresentação, edição e tradução de Marco Bucaioni, os contos de João Melo, publicados pela primeira vez pela Editorial Caminho, de Lisboa, em 2006, fazem parte da nova literatura angolana, até aqui mais conhecida pelas obras de José Eduardo Agualusa (1960), Pepetela (1941), ganhador do Prêmio Camões de 1997, e Luandino Vieira (1935), que obteve o Prêmio Camões de 2006, recusado por razões pessoais. Sua temática principal é a descrição da nova sociedade angolana nascida da luta pela independência (1975) e da guerra fratricida que se seguiu entre as facções do Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA), apoiada pelo regime soviético com a participação direta do governo cubano, e a União Nacional para a Independência Total de Angola (Unita), apoiada pelos Estados Unidos com a intermediação da África do Sul, dentro do contexto da Guerra Fria.

II
Mesmo com a queda do Muro de Berlim em 1989 e a derrocada do regime soviético, a guerra angolana só teve fim em 2002, depois de ter causado imensos danos ao país, inclusive com uma diáspora de muitos cidadãos que não tiveram outra saída a não ser tentar reconstruir a vida em Portugal, Brasil, Estados Unidos, Canadá, França, Inglaterra e outros países europeus. Mas a Angola pacificada do século XXI já quase nada tem da colônia portuguesa de meio século atrás, isolada do mundo.
Aberta a investimentos estrangeiros, é um país que apresenta grande crescimento econômico, especialmente nas áreas de diamantes, petróleo e recursos minerais. A grande dificuldade, porém, está na repartição dessa riqueza à qual não têm acesso grandes parcelas da população, que vivem em condições subumanas.
Com esse período de conturbação já superado, a literatura angolana vive hoje outra fase, depois de ter explorado à exaustão as vicissitudes de uma sociedade pós-colonial sob o véu marxista-leninista. Agora, numa etapa em que já não podem atribuir todos os males ao colonialismo, os angolanos precisam buscar entre os seus pares os responsáveis pelo atraso econômico e pela manutenção de tantas diferenças sociais.
Mas, encerrado há tão pouco tempo aquele período, é claro que os dissabores da guerra ainda estão presentes nestes contos de João Melo. É o que se pode contatar em "A morte é sempre pontual" em que o desfecho trágico, embora anunciado, acaba por surpreender o leitor.
Ou em "O Canivete agora é branco" em que conta o reencontro que não se deu, 30 anos depois, de um ajudante de caminhão com seu antigo colega de profissão que, mais esperto, soube como cavar a vida, filiando-se ao MPLA, o movimento vitorioso, freqüentando a Universidade Patrick Lumumba, em Moscou, até virar quadro do partido e do governo para tornar-se administrador de uma empresa de diamantes e governador provincial. Metido até o pescoço em negócios escusos, o antigo Canivete transforma-se em empresário, virando até mesmo "branco", sempre acompanhado de seguranças. Quem sabe uma paródia do "homem invisível" do norte-americano Ralph Ellison (1914-1994).

III
Em "O escritor", João Melo, abusando, no bom sentido, da ironia, traça o perfil de um homem de letras que vivia angustiado à espera do sucesso que nunca chegava, embora já tivesse escrito quilômetros de poemas, estórias, teses, ensaios e recensões literárias, além de construir uma carreira politicamente correta, pelo menos aos olhos dos vencedores, pois, durante o colonialismo, tivera de prestar muitas declarações à Pide (a polícia política salazarista) e, na fase pós-independência, participara da campanha nacional de alfabetização e das brigadas que foram colher café, sem contar que, durante a guerra anticolonialista, nunca fugira do país. Mesmo assim, nunca recebera um prêmio literário. Talvez porque não fosse nem mestiço nem branco.
Já no conto que dá título ao livro, João Melo reconstitui a relação de dois adolescentes que teriam nascido e crescido a mesma época, entre famílias comuns, aos quais todos davam como certo um relacionamento seguro e um casamento duradouro: "Crescemos juntos. Brincámos de médico, professor, engenheiro. Brincámos de casamento. Brincámos de papá e mamã. Nesse dia, lhe mostrei a minha pila. Ela disse: - Ih, tão pequenina! - Depois levantou as saias: as suas cuecas floridas deixaram-me paralisado de admiração. Quando quis lhe dar um beijo, como aqueles que meu pai dava na empregada, quando a minha mãe não estava em casa, ela fugiu. Durante uma semana, não apareceu na minha casa". (p.96).
Por aqui se vê o estilo ágil e moderno de João Melo. E, se o final não se adianta aqui, é porque ao resenhador não é lícito antecipar os epílogos dos contos e romances que resenha. Ao final deste livro, há ainda um glossário indispensável não só ao leitor italiano como ao lusófono pouco acostumado à história e à geografia de Angola. Muitas expressões do coloquialismo do português escrito em Angola ficaram de fora deste glossário, mas o seu significado o leitor pode intuir a partir do contexto de cada conto.
Como se sabe, o português na África é uma língua restrita a escritores, jornalistas, pessoal do governo, professores e alunos, ou seja, àqueles que a escrevem. Até porque a imensa população é lusógrafa (para citar aqui uma expressão criada pelo mestre francês Jean-Michel Massa), não luso-falante. Cada grupo étnico fala a sua própria língua entre si e sempre que um estranho ao ninho deixa o recinto. Era isso o que este resenhador percebia quando, na casa de amigos angolanos, em Oeiras, ausentava-se para ir à casa de banho.


IV
Jornalista, publicitário e professor, João Melo estudou Direito na Universidade de Coimbra e em Luanda. Graduou-se em Comunicação Social e fez mestrado em Comunicação e Cultura no Rio de Janeiro. Membro-fundador da União dos Escritores Angolanos, ocupou vários cargos nessa entidade. Atualmente, é diretor de uma agência de comunicação, além de ensinar numa universidade privada. É deputado no Assembleia Legislativa angolana.
Representante da "geração das incertezas", expressão alcunhada pelo grande crítico angolano Luis Kandjimbo, também poeta, João Melo começou sua trajetória literária na poesia, nos anos 1980, tendo lançado oito livros: Definição (1985), Fabulema (1986), Poemas Angolanos (1989), Tanto Amor (1989), Canção do Nosso Tempo (1991), O Caçador de Nuvens (1993), Limites e Redundâncias (1997) e Auto-Retrato (2007). Como contista, lançou mais três livros: Imitação de Sartre e Simone de Beauvoir (1998), The Serial Killer e outros contos risíveis ou talvez não (2000) e Filhos da Pátria (2001). Na área de ensaios, publicou Jornalismo e política (1991).

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IL GIORNO IN CUI PAPERINO SI È FATTO PER LA PRIMA VOLTA PAPERINA E ALTRI RACCONTI (O DIA EM QUE O PATO DONALD COMEU PELA PRIMEIRA VEZ A MARGARIDA), de João Melo. Tradução de Marco Bucaioni. Perugia: Morlacchi Editore, 205 págs., 2009. E-mail: editore@morlacchilibri.com

Site: http://www.morlacchilibri.com/
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage, o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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sábado, 13 de fevereiro de 2010

Romanceiro de Bárbara: Cantares de rebeldia (O Poeta de Meia-Tigela)

(Casa onde morou Bárbara de Alencar, na Praça da Sé, Município do Crato, Ceará).


Em homenagem aos duzentos e cinquenta anos de Bárbara de Alencar, nascida a 11 de fevereiro de 1860; e aos trinta anos do Romanceiro de Bárbara, de Caetano Ximenes Aragão (1927-1995).


Há trinta anos Caetano Ximenes Aragão publicava o seu Romanceiro de Bárbara, livro cujo título nos remete imediata e não casualmente ao Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles. O autor parece querer estabelecer desde o princípio um paralelo entre os episódios da Conjuração Mineira tão magistralmente recriada em versos pela poetisa carioca, e a Confederação do Equador que, no concernente à participação do Ceará, teve na família Alencar alguns dos significativos protagonistas.
Movidos pelo descontentamento frente às medidas do então recente governo imperial de Dom Pedro I, camadas representativas de Pernambuco, da Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará unem-se em oposição ao poder monárquico centralizador. Em nosso estado, depois de aguerridos combates, Tristão Araripe chega a empossar-se como Presidente da Província em 1824, no entanto pouco demorando como tal. A pronta e violenta reação das tropas legalistas leva-o à morte em combate, bem como instaura furiosa perseguição aos revoltosos, culminando com o fuzilamento, em 1825, dos mártires Azevedo Bolão, Ibiapina, Carapinima, Padre Mororó e Pessoa Anta — no antigo Campo da Pólvora, atual Passeio Público.
Se Bárbara de Alencar não esteve envolvida diretamente na intentona de 1824, foi figura emblemática em 1817. Não apenas “acobertara” as conspirações de seus filhos Tristão e José Martiniano (este, pai do autor de Iracema), mas alimentara o ideal revolucionário com sua força de — mais do que matrona — matriarca esclarecida do Crato. É o que atesta a carta-testamento do padre, médico e naturalista Manuel de Arruda Câmara: “A D. Bárbara de Crato, devem olhá-la como heroína”. Heroica seria realmente sua postura quando do fracasso, em apenas uma semana, dessa primeira experiência republicana cearense: assim como seus filhos, é presa e conduzida ao antigo Quartel de 1ª. Linha da capital, e encarcerada sem direito a regalia de qualquer espécie. Pelo contrário, viveria dias de extrema penúria até sua transferência por mar para a Fortaleza das Cinco Pontas em Recife e, dali para Salvador, onde finalmente fora libertada, após uma devassa que com seus respectivos sofrimentos e represálias, durara cerca de três anos. O retorno para casa não resultou, porém, exatamente numa alegria: com os bens tomados pelo Império, e o nome enxovalhado (os adversários políticos naturalmente aproveitando-se da ocasião para a disseminação de toda sorte de maledicência), tornaram-se uma espécie de “exílio domiciliar” seus últimos anos. Não se tem notícias do pertencimento de Bárbara de Alencar às insubordinações que se seguiram à sua soltura. Morre em 1832, a vinte e oito de agosto, aos setenta e dois anos.
Eis os fatos que servem de motivo à lírica de Caetano Ximenes Aragão e ao Romanceiro: escrito num período marcado pela agonia do regime militar e início da Abertura, o livro faz do canto a Bárbara um canto à liberdade. O que é simbolizado exemplarmente pela contínua aparição no poema da Ave da Madrugada que “canta de noite e de dia/ é sua maldição cantar/ cantares de rebeldia/ e aquele que ouvir seu canto/ nunca mais se concilia/ será sempre um encantado/ da ave da madrugada”. E que é revelado ainda pelo poeta no Posfácio à obra: “Este poema é uma metáfora sobre a liberdade. Nasceu em tempos de incertezas. Havia medo, exílio, prisões, torturas, homens e mulheres banidos. Bárbara Pereira de Alencar, primeira presa política do Brasil, na ordem do tempo, sofreu prisão, violência, maus tratos, exílio e teve seus bens confiscados. Mas resistiu e por isso e outras razões, é uma heroína marginalizada na História de nosso País”.
“Uma heroína marginalizada na História de nosso País”, diz-nos o poeta. Não deixa de ser verdade, se pensamos no espaço concedido a diversos vultos tornados referências nacionais. Não deixa de ser verdade, se pensamos no espaço concedido a outros vultos tornados referências em nosso próprio estado. Não deixa de ser verdade se confrontamos o que representam as imagens de Bárbara de Alencar e seu filho Tristão Araripe, quando comparadas à imagem que atualmente exportamos como sendo a tradutora de nossa cearensidade: a de um Ceará não só Moleque, mas cuja molecagem vem identificando-se, gradualmente, com o baixo humorismo. Enaltecemos com orgulho a figura de um povo irreverente a ponto de vaiar o próprio sol. Mas diminuímos o valor dessa mesma irreverência quando a igualamos ao riso fácil resultante da piada mal-contada, reprodutora de preconceitos e estereótipos, incapazes de sugerir quaisquer maiores enfrentamentos do status quo. Forjamos cada vez mais a face de um povo que sabe rir (de si); porém, não será esse contentamento algo um tanto forçado, esgar ao invés de sorriso? Quando Caetano Ximenes elege Bárbara de Alencar motivo de sua poética, contribui para o resgate de outra fundamental expressão de nossa formação como povo: a expressão da luta, do confronto, do heroico e do trágico, igualmente cearenses.
Tomemos como simbólico o não nos ter chegado um registro, desenho, nenhum esboço sequer, dos rostos de Bárbara ou Tristão: e empreendamos o avivamento de suas feições, o avivamento de nossas feições, estimulando a presença de seu exemplo entre nós. Se Zenon Barreto soube representar a ausência de tal registro na estátua erigida em homenagem à “Guerreira do Brasil” (para lembrar a obra de Roberto Gaspar), soube também postá-la retilínea e altiva, conforme a vemos na Praça Bárbara de Alencar, na Avenida Heráclito Graça. Felizmente há sempre quem insista na representação de um Siriará combativo, e que sabe fazer da festividade, inclusive, um momento de exaltação dessa “outra face” de que falamos: é o caso de inúmeros anônimos. É o caso também de Maria do Amparo, que mantém um pequeno museu na Casa do Sítio Caiçara em que Bárbara de Alencar nasceu, no município de Exu, sem apoio governamental ou particular algum. É o caso de Oswald Barroso à frente do anual Cortejo dos Confederados; e agora do Maracatu Nação Fortaleza e seu tema “Bárbara Luz da Liberdade”.
Vejam que não é absolutamente necessário que tomemos a vida negativamente, por a assumirmos heroica e tragicamente: é condição maior do trágico, não a dor, mas a insubmissão ante um destino demarcado. Sorriamos, pois: não com escárnio, mas com a felicidade dos que se sabem encantados pela “ave da madrugada/ que canta de noite e de dia/ (...) cantares de rebeldia”.


“Bárbara era feita
de pedaços de brisa
certezas
e terra ensanguentada”

(Caetano Ximenes Aragão)
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