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sábado, 20 de fevereiro de 2010

“Lama e folhas”, de Moreira Campos: Obra-prima (Nilto Maciel)



Iniciou-se Moreira Campos (1914-1994) no mundo literário com o volume Vidas marginais (Fortaleza: Edições Clã, 1949), composto de doze peças ficcionais: “Lama e folhas”, “Náufragos”, “Vigília”, “Suor e lágrimas”, “Esmagados”, “Varela”, “Soldado da borracha”, “Coração alado”, “Dona Adalgisa”, “Dúvida”, “Sugestão do silêncio” e “Vidas marginais”. Entretanto, em 1947, um deles, “Coração alado”, foi incluído por Graciliano Ramos em Contos e novelas (Norte e Nordeste). É possível que os outros onze também estivessem prontos. Ou bem antes daquele ano.

Segundo o professor, pesquisador e ensaísta Sânzio de Azevedo (“Moreira Campos e a arte do conto”, estudo inserido em Obra completa: Contos, São Paulo: Maltese, 1996), o discípulo cearense de Tchekhov e Machado “não renegou os contos de seu primeiro livro” (...) “nem poderia fazê-lo, pois alguns desses contos longos estão definitivamente consagrados, como, entre outros, ‘Lama e folhas’ e ‘Coração alado’, que figuram em antologias nacionais e até de outros países e, mesmo que não figurassem, seriam as obras-primas que realmente são”. Quatro dessas narrativas estão na antologia Contos escolhidos: “Lama e folhas”, “Vigília”, “Coração alado” e “Dona Adalgisa”. Provavelmente escolhidos pelo contista. O primeiro deles se incluiu também na Antologia cearense, organizada pela Academia Cearense de Letras, Imprensa Oficial, 1957; em O conto do Norte, 2º volume, seleção de R. Magalhães Júnior, Editora Civilização Brasileira, 1959; e em Terra da luz, organizada pela Secretaria de Educação e Cultura do Ceará, em 1966.

Estudiosos situam a obra de Moreira Campos em duas fases: a das composições mais longas, de “enredo perfeitamente delineado”, e a posterior, de peças mais curtas, “uma mancha, quase sem enredo” (Sânzio). “Lama e folhas” é, pois, da primeira fase. E é ele o objeto deste breve estudo.

Pelas páginas de “Lama e folhas” transitam diversos personagens, quase todos sem muita importância. Como na maioria das histórias em primeira pessoa, nesta o protagonista se apresenta como narrador, embora não seja o primeiro a ser exibido: “A velha minha sogra meteu a cabeça entre a porta” (...). E se mostra aos poucos, ainda sem revelar o nome: “Sou meio áspero”. Só declina o nome – José Sampaio - às vésperas do desenlace. A personagem por ele apontada, também sem nome explícito, anuncia a chegada (ao mundo e à história) do terceiro ser fictício: “- Um menino!” O filho do protagonista. Descreve-o assim o narrador: (...) “um ser vermelhinho, de pálpebras ainda intumescidas, punhos cerrados e meio ridículo entre as dobras largas do cueiro. Dormia, ou fingia dormir, o safado!” Numa cena mais adiante, o menino é nomeado: Dudu (apelido) ou Eduardo. No decorrer da trama, o menino também se projeta, à medida que o tempo passa: “Meu filho cresce: completou cinco anos. Puxou a mim: é grosso, tem os dedos curtos e o pescoço empinado”.

A quarta personagem aparece a seguir (a primeira com nome explícito), como numa sequência de filme: (...) “encaminhei-me para o lado de Marta”. (...) “Repousava exangue, mas sem queixas, pé-de-boi. É mulher como trinta!” Trata-se da mãe da criança, obviamente. O quinto ser fictício surge na cena seguinte, noutro lugar, o escritório do narrador. A ação se dá depois do nascimento do menino. Exerce a função de guarda-livros e é assim descrito, de forma caricatural: “o velho Ciríaco, ser bicudo e de grande corcunda”. Sucedem-se algumas informações em espectro mais amplo: “É casado e, na vida, creditou-se ou debitou-se apenas os filhos: bem doze, uns meninos caneludos e remelentos” (descrição debochada). O sexto personagem, o pai de Marta, surge no meio da obra: “Família pobre, o velho é corretor. Contudo, tem pruridos burgueses”. (...) “Meu sogro acha-me penetrante: - Espírito atilado. Este vai longe...” O sétimo é o preto Sabino: “alma simples e sincera, bom negro!”

No decorrer da narração/narrativa Marta também é relembrada: “Foi por esse tempo que Marta me conheceu.” (...) “Era então uma menina lânguida, com leitura de romances baratos”. Entretanto, quem vai tomando corpo é a figura do protagonista, como é normal: “Enfim, sou casado há oito anos, engendrei seguidamente cinco meninas e é este o primeiro macho!”. Sendo a composição elaborada também com flashbacks, na terceira página o narrador rememora: “Com sacrifício, meu pai mandou-me para um colégio na capital.” (...) “Frequentei bordéis e tomei mercúrio. Depois, tornei-me menos realista e dei para namoricar nas avenidas e ir aos cinemas, com pretensões a Hollywood”. O caráter do herói-vilão vai se pintando em rápidas pinceladas: “Como empregado, segui este lema: flexionava a espinha diante dos chefes e era autoritário com os humildes. É um meio seguro de vencer-se.” (...) “Aí, com seis meses, dei um desfalque de quarenta mil cruzeiros.”

Ser abjeto, não se poupa, como se não desse importância às opiniões dos outros. Lembra o pai a falar ao filho em “Teoria do medalhão”, de Machado de Assis. Diz-se “sujeito de imaginação curta”. Porém, não há indícios de que a narração seja confissão (oral) a outra pessoa, depoimento escrito ou monólogo interior. Não seria confissão, posto não haver referência a interlocutor, a não ser no desfecho: “Deixem-me só. Tragam-me café” (...) Mas a exortação é compreensível para o momento (a morte do filho). Também não seria depoimento escrito, pelo próprio final.

Desprezível, o personagem também despreza seus semelhantes. As cinco filhas não são sequer nomeadas. Foram engendradas (geradas, produzidas, como se fossem bonecas, objetos). Nas bagunças infantis, em casa, o menino é tratado com carinho; as meninas, com castigos: “Não há dúvida: a culpada é a irmã. Castigo-a, aplicando-lhe umas palmadas”. Seus empregados são vistos por ele como seres inferiores: “A essa gente não se pode dar muita confiança. Sentem-se logo à vontade e no outro dia faltam ao serviço”. Os filhos do guarda-livros são caneludos e remelentos. O empregado anda “com um pé no tamanco, a boca das calças arregaçadas, por causa de uma ferida na perna”. O sogro “falava em reputação, cabelos brancos, seu círculo de relações e outras surradas hipocrisias. Não fazia muito caso do velho. Seus desejos em casa nem sempre são atendidos, autoridade frágil.” As empregadas domésticas são “canalha”.

O núcleo básico de “Lama e folhas” se desenvolve em dois ambientes: nos primeiros momentos, na casa da família de José Sampaio, na cidade (não há nenhuma indicação do nome da cidade); e, na parte final da história, num sítio comprado após o último parto de Marta, “num pé de serra”, com casa de veraneio ou de férias. Não há descrições da primeira: quarto (“Entrei intempestivamente no quarto”), com cama (“Sentei-me à beira da cama”) e berço (“debrucei-me sobre o berço”), cozinha (“Ouço sussurros na cozinha”), escada (“fico sentado no pé da escada”) e jardim (“armo a rede num recanto do jardim, que minha casa é retirada”). E alguma indicação de viver em cidade: “Já não leio os jornais, deixei a roda de amigos e limito-me ao rádio à noite”. O sítio é descrito assim: “Coisa modesta, com algumas fruteiras. Um pequeno córrego rola entre seixos limosos e há uma velha piscina, rústica, com pedras que já se desprendem da argamassa”. A descrição do ambiente em volta do sítio é poética: “À noite, na planície larga, pisca a luzinha dos lugarejos esparsos. Há lagos onde a lua se reflete pálida. Em volta, o horizonte se amplia, cresce”. Uma constatação (crucial no desenrolar das ações) chama a atenção do leitor: “a casa é fincada numa elevação abrupta talhada na rocha”. Nas cenas secundárias, outros locais são apenas mencionados: o escritório e o “bar em frente”. Nos episódios passados, o protagonista fala de ruas da cidade, bancos de avenida, porões de pensões, esquinas, calçadas, o ponto do bonde. Supõe-se uma cidade grande (talvez Fortaleza), para a época da história.

“Lama e folhas” é disposto, no tempo, em alguns episódios, tanto os da trama propriamente dita, como os do passado mais remoto do narrador (flashback). No bloco mais relevante estão o nascimento de Dudu (início da peça), ocorrido na madrugada ou pela manhã; a estada de José Sampaio no escritório de seu estabelecimento comercial, à tarde (“Ao fecharmos o escritório”), seguida de uma rápida ida a um bar (“Na banca de cerveja, entre amigos, disse-lhes que agora era pai”); em casa de novo, à noite, provavelmente (“abracei minha sogra, derramado e comunicativo. O álcool me tira compostura”). Como se estivesse a pensar (monólogo interior), o narrador, estirado na rede (“Já me começavam a pesar as pálpebras”...) rememora parte de sua juventude: “Com sacrifício, meu pai mandou-me para um colégio na capital”. No bloco (parágrafo) seguinte, relembra a vida na capital: “Trancei pernas nas ruas, espreguicei-me nos bancos de avenida, dormi em porões de pensões, enganando os proprietários e fiz-me revolucionário.” E lembra o tempo em que conheceu Marta, o início do namoro, a oposição da “velha” (a futura sogra) ao namoro da filha com “um tipo desclassificado daquele”, o casamento, o emprego dele no banco, o desfalque dado por ele. Tudo de forma sucinta.

Na metade da narrativa, volta ao conflito nuclear e dá um salto no tempo: “Meu filho cresce: completou cinco anos”. Seguem-se pequenos episódios domésticos com os filhos: conta-lhes histórias, faz-lhes compras de brinquedos, presencia suas briguinhas. E anuncia: “Comprei um sítio, perto, num pé de serra”. Inicia-se, então, o essencial da obra, como num diário: “Chegamos há cinco dias. (...) Manhã. Dou a mão a meu filho e descemos a planície. (...) Hoje estou preocupado, aborreço-me. (...) onde andaria o meu filho?” E chega-se ao clímax.

Para compor a narrativa, Moreira Campos se valeu quase sempre do perfeito, o que é comum aos narradores. Mas também do imperfeito, assim como do presente (sobretudo nas falas, é claro, mas também na narração: “o velho é corretor”). Em alguns trechos, faz um jogo com os tempos verbais: “São assim”; “apareceram aqui em casa”; “poderia meter pelo meio”, “antes eu nunca me preocupara”. Uma ou outra vez, se vale do futuro. Alguns verbos (adelgaçar, encrespar, embirrar) mais raros, mesmo em livros de ficção brasileiros mais recentes. No desfecho, como em delírio, o personagem mais uma vez passeia pelos tempos verbais: “Acredito que sonhei. A sensação é de pesadelo. (...) Tragam-me café, e eu fumarei mais um cigarro. (...) Já não saberia trilhar os mesmos caminhos”.

Sampaio se diz curto de conhecimentos. Estudou pouco, leu pouco. “Mas faltam-me recursos, o miolo não produz muito”. Chega a zombar dos escritores: “O recanto (o sítio) tem sugestões. Seria bom para esses indivíduos que fazem versos ou escrevem romances. Eu, que sou áspero” (...). Mesmo assim, é capaz de escrever frases como esta: “Envolvo as respostas em retalhos de panteísmo”.

O desenlace trágico se anuncia na penúltima página: “Hum!... só agora descubro este detalhe: a casa é fincada numa elevação abrupta talhada na rocha. É preciso estar vigiando esses meninos. Se um deles se despenca aí de cima...” Entretanto, o conto se vai aproximando do remate, aos poucos. E vai num crescendo, até desembocar nas palavras finais de Sampaio, e que dão título à história: “Águas, lodo... lama e folhas... lama e folhas...” Só então o leitor compreende aquele homem tosco, machista, preconceituoso, arrogante, completamente abatido, transformado, pela dor, em ser humano. Digno de piedade.

E é esse desenho detalhado (com o uso do flashback, as descrições, a autoanálise do narrador), visto como enredo tradicional, esse desenho exaustivo do caráter do protagonista que faz de “Lama e folhas” uma obra-prima: o homem sem caráter, machista, preconceituoso, cheio de defeitos, termina em choro, abatido, vencido pelo dor. Completamente em frangalhos.

Fortaleza, carnaval de 2010.

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Lama e folhas
 
Moreira Campos