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quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Sim, é o céu, Joyce (Nilto Maciel)

(The Garden of Eden (1828), de Thomas Cole)



Achava-me a ler uma crônica de Francisco Miguel de Moura, para minha pupila Violeta Feitosa, que me visita uma vez por semana, pelo menos, quando me chamaram ao portão de casa. Ninguém grita meu nome no meio da rua, a não ser o carteiro Evaristo. Pedi licença à estudante e corri, aos tropeços – que ando a cambalear, sobretudo quando imerso na beleza –, para atender o chamado do condutor de malas postais.
Vocês não sabem, meus amigos, a alegria que me dá o grito quase diário do esquelético e esquálido Evaristo. Porque só me traz alegrias: livros, livros e mais livros. Não me traz (nunca trouxe) telegramas de morte resumida: “Lamento informar passamento Paulo Tarso. Coração parou subitamente.” O de ontem foi Amada América, de Urda Alice Klueger. Não devo, porém, deixar o leitor a imaginar livros e, muito menos, crônicas. Ou deixar Violeta sem o final da peça de Chico Miguel (assim ele gosta de ser chamado).

Eu lia – faltavam dez linhas – a pequena jóia literária intitulada “Joyce”, que assim se inicia: “Minha netinha Joyce, quando tinha quatro anos, era (e ainda é na sua idade mais crescida) uma gracinha de criança”. Lá pelo meio: “Mas um dia Joyce se pôs a pedir que queria ir também à tarde ver o mar, para saber como era”. E assim vai a narração, docemente, sem o tropel de ondas bravias. A criança brincava com as vagas e, súbito, sussurrou ao ouvido do avô poeta: “– Vovô, é o céu, não é? Por resposta, nada pensei, foi uma coisa assim instintiva e rápida: – Sim, é o céu, Joyce.”

Esta crônica eu li há mais de dez anos. Lembro bem daquela tarde, daquela leitura, daquela comoção. Está na coleção E a vida se fez crônica.

Não esperei pela reação da moça. Precisava ver o que me trouxera o carteiro. Apenas um pacote. Violeta me pareceu aborrecer-se: “Mais um livro? Não sei se mais um livro. A continuar assim, você não poderá receber mais visitas, tão cheia de livros estará sua casa. Não faltará espaço para você, menina”. Como se me zangasse, violentei o embrulho, à maneira dos celerados. Rasguei abruptamente o invólucro e me vi diante da foto (na capa do livro de Urda) de uma nativa do Equador, com seu chapéu, seus colares, sua indumentária colorida. Pus-me a lamber as orelhas da Amada América, escritas por Aldo Vera Sarubbi: (Urda) “recolhe os frutos da sua observação dos lugares e caminhos da nossa América, por onde andou. (...) Ao ler estas crônicas americanas, o olhar da Urda, por vezes cheio de candura, por vezes cheio de indignação, aproxima de nós uma realidade rica e complexa que o Brasil não reconhece como sendo sua também”.

Não li o livro de Urda naquela tarde. Li-o à noite, quando as corujas me convidavam a dormir. Andei por La Paz, Santa Cruz de La Sierra, Tiauanaco, todo o Equador, Lago Titicaca, o Caribe Colombiano, os Andes, Machupichu, Cuba (La Bodeguita, onde também estive em 2000), numa viagem quase interminável. E adormeci aos pés de coca.

Conheço (não a vi ainda) Urda faz um mês. Trocamos correspondência pela Internet e livros. Conheço Chico Miguel há mais de trinta anos (mas só o vi em Cuba). Violeta me faz visitas de estudante curiosa e inteligente há poucas tardes. É tudo muito salutar, não fosse a angústia de me sentir perdido. Pois sou pobre criatura sumido no Jardim do Éden, entre flores mil, frutos proibidos e livros maravilhosos, como este de Urda Alice Klueger.

Fortaleza, 14 de setembro de 2010.
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