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sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Estado Novo no Brasil e em Portugal (Adelto Gonçalves*)

I

Tanto no Brasil como em Portugal a República reinstalou a instabilidade política, depois de uma fase sem golpes, quarteladas e outras formas de manifestação política fora dos meios institucionais. Nos dois lados do Atlântico, caminhou-se em direção a sistemas ditatoriais, ambos denominados da mesma forma: Estado Novo. As semelhanças, porém, param por aí, como mostra o professor Leonardo Prota, doutor em Filosofia pela Universidade Gama Filho (UGF), do Rio de Janeiro, e diretor-executivo do Instituto de Humanidades, de Londrina-PR, em seu ensaio “Estado Novo no Brasil e em Portugal – características distintivas no processo de constituição”, apresentado durante o VIII Colóquio Antero de Quental, cujas atas foram reunidas na revista Estudos Filosóficos, do Departamento das Filosofias e Métodos da Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ)-MG, nº 3, julho/dezembro 2009.

Em ambos os casos, ocorreram soluções de força, mas os regimes assumiram feições diferentes. No Brasil, superada a fase de insurreições armadas nos anos 20 e derrubada a chamada República Velha, com a chegada ao poder de Getúlio Vargas (1882-1954), um latifundiário e ex-ministro da Fazenda do governo anterior, o sistema vitorioso seria o positivismo, agora chamado de castilhismo, devido ao fato de que a personalidade política que o implantou na província do Rio Grande do Sul chamava-se Júlio de Castilhos (1860-1903). Prota lembra que a revolta militar de 1930 contra a elite paulista – constituída basicamente por cafeicultores e associados – partiu do Rio Grande do Sul, com a participação de menor relevância de Minas Gerais e de alguns Estados do Nordeste.

Vargas ainda tentou levar adiante seu projeto (ou falta de projeto) com um governo rotulado de provisório, postergando por todos os meios o reordenamento institucional, nomeando interventores militares nos Estados. Até que, em 1932, a elite paulista conseguiu organizar um arremedo de resistência que, outra vez, fracassou, ainda que tenha obrigado o governo golpista a admitir a convocação de uma Assembléia Constituinte, que aprovou uma nova Constituição, a de 1934.

Insuflado pelos ventos que vinham da Europa em favor dos sistemas totalitários e o conseqüente encurralamento do sistema democrático, Vargas aproveitou-se, em 1935, de uma ridícula e estouvada tentativa de assalto ao poder pelos comunistas para decretar o Estado de Guerra, ignorar as imunidades parlamentares e assumir de vez seus pendores ditatoriais. Permitiu, porém, que, em 1937, houvesse campanha eleitoral até que, em novembro daquele ano, deu um novo golpe de Estado, fechando o Parlamento e proibindo os partidos políticos. Estava implantado o Estado Novo brasileiro.

Em Portugal, como observa Prota, o regime totalitário nasce também do fracasso do sistema representativo democrático, considerado incapaz de resolver os conflitos sociais. Tendo nascido de um golpe contra o sistema monárquico, a República portuguesa viveu anos de instabilidade, inclusive com a participação de militares na política. Até que em 1926 uma insurreição deu forma a um novo regime, o Estado Novo, consagrado na Constituição de 1933.

No bojo desse movimento, o professor António Oliveira Salazar (1889-1970), da Universidade de Coimbra, que entrara no governo chefiado pelos militares como ministro das Finanças em 1928, assume-se como a principal liderança para colocar em prática um regime forte. O governo subordinava-se apenas ao presidente e sua permanência não dependia da Assembléia. Os partidos políticos foram abolidos e, em seu lugar, passou a funcionar uma organização chamada União Nacional, com membros escolhidos por votação direta, à maneira integralista.

II

Entre outros excelentes trabalhos apresentados durante o Colóquio, está “O novo conceito de Era Vargas – sua fundamentação teórica”, do professor Ricardo Vélez Rodríguez, do Núcleo de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos da UFSJ, também doutor em Filosofia pela UGF, que recupera a fase parlamentarista de Getúlio Vargas, mostrando-o como um defensor intransigente do regime castilhista, que considerava legítimo, “porquanto inspirado na verdadeira ciência social – o comtismo – e democrático, porque fundamentado no voto proporcional, aberto a todas as opiniões”, embora não deixasse de reconhecer que se tratava de um regime de força.

No poder, porém, o caudilho Vargas entraria em atrito com os caudilhos gaúchos Borges de Medeiros, Flores da Cunha e outros. Mas acabaria por buscar soluções negociadas quando os adversários eram de grande porte, sem condições de serem esmagados, como fizera com a oposição comunista ou com vozes dissonantes entre os letrados da classe média, de que o escritor Graciliano Ramos (1892-1953) seria o melhor exemplo. Diz o filósofo que Vargas, em sua fase madura, já no poder, projetou o positivismo, o darwinismo social e o saint-simonismo de sua primeira formação.

Aliou a isso uma extraordinária habilidade política, que só encontra paralelo hoje em Luiz Inácio Lula da Silva. Em outras palavras: em vez de lutar contra os fatos e buscar as reformas efetivas, sempre preferia contar com as exigências da realidade. Para melhor exemplificar essa trajetória, Vélez Rodrigues transcreve o princípio do darwinismo social exercitado por Vargas em seu Diário (Rio de Janeiro, FGV, 1995, vol.1, p.486-487): “Vencer não é esmagar ou abater pela força todos os obstáculos que encontramos – vencer é adaptar-se (...); adaptar-se quer dizer tomar a coloração do ambiente para melhor lutar”. Se se colocar nestas palavras alguma metáfora futebolística, ninguém dirá que este pensamento não foi externado por Lula da Silva.

III

Em outro trabalho que assinou com Antônio Paim, do Instituto de Humanidades, “A sobrevivência do liberalismo na cultura luso-brasileira”, Vélez Rodríguez faz uma análise do Brasil de hoje, reconhecendo que as administrações petistas vêm prejudicando o aperfeiçoamento da representação mediante práticas que considera abusivas na negociação política. E defende que um governo representativo se fortalece também com a melhoria da escolaridade, observando que a baixa escolaridade está associada à sobrevivência do patrimonialismo.

O que, aliás, reflete-se no baixo nível cultural e educacional da maioria dos candidatos a cargos legislativos e executivos. É de lembrar que a tragédia brasileira, hoje, é o chamado ensino fundamental, que vem sendo negligenciado desde a Era Vargas, para se dizer o mínimo. Isso fica provado na pesquisa feita por Alberto Carlos de Almeida e comentada por Paim e Vélez Rodrigues, segundo a qual quanto mais baixa a escolaridade mais as pessoas tendem a considerar legítimo o uso de cargo público em benefício próprio. Ou ainda são favoráveis à censura a programas de TV que façam críticas ao governo. É de lamentar também que, levando-se em conta a baixa qualidade do ensino no Brasil, o tempo de escolaridade já não significa muito, pois é fácil encontrar jovens ou pessoas maduras semi-alfabetizadas que conseguem se matricular em cursos superiores.

Na análise que faz das conclusões fundamentais do Colóquio, o seu organizador, o professor José Maurício de Carvalho, do Departamento de Filosofia da UFSJ, doutor em Filosofia pela UGF, destaca a desconfiança no liberalismo como a razão da implantação da República no Brasil e em Portugal, à qual se soma o esgotamento do Segundo Reinado aqui e o desmoronamento das formas partidárias de representação política e o messianismo do discurso republicano, que apresentou o sistema como resposta ao sentimento de decadência em terras lusas. Na análise das tradições socialistas, Carvalho observa que em ambos os países os partidos socialistas se aproximaram da democracia representativa, embora no Brasil reste certa ambigüidade doutrinária no que se refere à adesão plena a tal sistema.

O Colóquio reuniu ainda trabalhos de Alexandro Ferreira de Souza (Universidade Federal de Juiz de Fora-UFJF ), Marco Antonio Barroso (UFJF), Pedro Calafate (Universidade de Lisboa), António Pedro Mesquita (Universidade de Lisboa), José Esteves Pereira (Universidade Nova de Lisboa), Humberto Schubert Coelho (UFJF), Bernardo Goytacazes de Araújo (UFJF), Arsênio Eduardo Corrêa (Instituto de Humanidades), Manuel Felipe Canaveira (Instituto de Filosofia Luso-Brasileira-Portugal), Tiago Adão Lara (UFJF), Paulo Ferreira da Cunha (Universidade do Porto), Rafael César Pitt (UFJF), Ernesto Castro Leal (Universidade de Lisboa) e Elizabeth Santos de Carvalho (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

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ESTUDOS FILOSÓFICOS: ATAS DO VII COLÓQUIO ANTERO DE QUENTAL. Revista do Departamento das Filosofias e Métodos (Defime) da Universidade Federal de São João del Rei. São João del Rei-MG, , nº 3, julho-dezembro 2009. E-mail: dfime@ufsj.edu.br
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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