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quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Bocage em quarta edição (Adelto Gonçalves*)

Depois da colocar no mercado em 2004 os volumes I (Sonetos) e VII (Poesias Satíricas, Burlescas e Satíricas), a Edições Caixotim, do Porto, deverá lançar nos próximos dias o volume II da Obra Completa de Bocage, que reúne cantatas, canções, idílios, odes e cantos. Organizada pelo professor Daniel Pires, presidente do Centro de Estudos Bocageanos, de Setúbal, a Obra Completa é constituída por sete volumes, abrangendo muitos poemas que ficaram de fora das edições anteriores de Inocêncio Francisco da Silva, Teófilo Braga e Hernâni Cidade.

Uma das novidades que o volume II traz é a ode “O Adeus”, que Bocage fez ao final de 1789, em homenagem a Maria de Saldanha Noronha e Meneses, que o teria apoiado em sua breve estada em Macau. As filhas de Maria de Saldanha também foram lisonjeadas num soneto, publicado em Rimas, t. 1, o que deixa antever que essa dama da sociedade macaense deve ter contribuído bastante para que Bocage voltasse a Lisboa. A ode, até agora, só havia sido publicada em Noites de Évora, publicação mensal de António Francisco Barata, 1897, pp. 16-19, que consta do acervo da Biblioteca Nacional de Lisboa, e saiu recentemente no Jornal de Letras, de Lisboa, de 4-17/1/2006, p.19.

Quem também ajudou Bocage a retornar foi o comerciante Joaquim Pereira de Almeida, a quem o poeta chama de “meu benfeitor, meu caro amigo” numa elegia que lhe ofereceu por ocasião da morte de seu pai, escrita em Lisboa a uma época em que ambos já estavam de volta ao Reino. Em Improvisos de Bocage na sua mui perigosa enfermidade, dedicados a seus bons amigos, o autor cita no soneto “Aos Amigos” o nome de Almeida, a quem define como “humano”.

Na documentação de Macau do Arquivo Histórico Ultramarino, pode-se ver que Almeida, chegado em 1787, logo se tornou um dos principais negociantes da praça. Era sobrecarga, ou seja, sócio, na nau Marquês de Angeja. No AHU, é possível saber que o Marquês de Angeja deixou Macau com destino a Lisboa no começo de janeiro de 1790 e tudo leva a crer que Bocage tenha retornado nessa nau. Da documentação, porém, não consta o seu nome.

Almeida mantinha boas relações com o ouvidor Lázaro da Silva Ferreira, também juiz-administrador da alfândega, a quem Bocage homenageou com uma sáfica. Da documentação, Lázaro não emerge como grande homem da lei: depois de quase dez anos no cargo, era acusado de proteger contrabandistas e promover falcatruas.

Mas, no caso de Bocage, sabe-se que, ao intervir em favor do poeta, o fez por magnanimidade, pois, em troca, só poderia receber versos, como, de fato, recebeu. Sem contar que teve de passar por cima da lei porque o tenente Bocage, antes de aparecer em Macau, havia desertado de seu posto em Damão. E, como desertor, deveria ter sido punido.


Estudos Aprofundados

Os dois volumes que saíram à luz até agora constituem edições bem cuidadas da produção de Bocage, ambas acompanhadas por introduções do organizador que equivalem a estudos aprofundados da obra do poeta, o que garante a qualidade dos volumes que estão por vir. Preocupado em manter-se fiel na transcrição tanto quanto possível ao autor, o organizador tratou de atualizar não só a ortografia do poeta como a linguagem de dois de seus editores, que eram de meados do século XIX, respeitando, porém, a métrica de Bocage, sem cair na tentação de corrigir erros, além das gralhas evidentes. Respeito que, diga-se a bem da verdade, os editores anteriores não tiveram, talvez porque à época o entendimento fosse outro.

No volume I, Daniel Pires estima, na introdução, que ascendem a 287 os sonetos de Bocage que conheceram os prelos até 1805, ano em que ocorreu o seu falecimento. Como a edição que organizou reúne 381 sonetos, lembra que 25% foram publicados postumamente, o que significa que não tiveram o imprimatur do autor.

Portanto, exigiram maiores cuidados do organizador que, à falta de outras alternativas, muitas vezes, teve de se valer do que decidiram Nuno Álvares Pato Moniz e Inocêncio Francisco da Silva à vista dos manuscritos que consultaram. Sem contar outros poemas que foram produtos duvidosos da memória de amigos que teriam anotado o que Bocage dissera de improviso. E ainda algumas cópias que apenas a tradição consagrou como de Bocage, sem qualquer outra evidência.

Pires lembra que a primeira edição póstuma das obras de Bocage foi publicada em 1812 e 1813 por Desidério Marques Leão, cuja iniciativa foi toda movida pelo lucro fácil. Basta ver o que diz dele a irmã de Bocage, Maria Francisca, que nunca recebeu um tostão pela entrega dos originais: “José Pedro fez-me um grande favor quando deu os originais (quando José Agostinho lhe entregou para me mandar) ao Costa que os deu ao Corcovado Leão para daí seguir o que se tem seguido”, escreveu numa carta que faz parte hoje do acervo do Arquivo Distrital de Setúbal.

Para o leitor pouco afeito à biografia de Bocage, lembramos que José Pedro é o tal das Luminárias, dono de um botequim ao lado do Nicola, ao Rossio, que costumava celebrar fatos da história de Portugal com iluminações à frente de seu estabelecimento comercial. Foi amigo de Bocage, mas nas cartas de Maria Francisca não se sai muito bem.

José Agostinho é Macedo, o padre Lagosta, com quem Bocage muitas vezes divergiu. Mais tarde, Macedo ainda iria atentar contra a memória de Bocage. E pensar que nas mãos desse homem foram parar os seus poemas... Não seria aleivosia imaginar que Macedo pode ter dado fim a muitos originais bocageanos.

Costa é José Maria da Costa e Silva, autor do prefácio dos dois volumes que Desidério Marques Leão imprimiu, intitulando-os IV e V das Obras Poéticas de Manuel Maria Barbosa du Bocage, induzindo o leitor a pensar que se seguiam aos três tomos das Rimas. Costa e Silva era um intelectual bisonho, que escreveu uma biografia de Bocage repleta de erros.

A Marques Leão, a irmã de Bocage chama de Corcovado Leão porque o impressor era corcunda. Seria um tipo ladino, pouco responsável, sem gosto pela palavra empenhada, que suscitou de Maria Francisca este comentário azedo: “Se eu tivesse o privilégio, há muito que o Leão não tinha garras”.

Diz Pires, com acuidade, que a edição de Desidério Leão só teve um mérito insofismável: obrigou Pato Moniz, herdeiro intelectual de Bocage, a preparar uma edição da obra inédita do poeta, “para a qual contou com a colaboração de admiradores e amigos do escritor, que fizeram questão de contribuir para desmistificar aquela publicação ínvia e pouco transparente”. Nasciam assim as Verdadeiras Inéditas, Obras de (...), tomo IV e 1º das suas Obras Póstumas.


Poesias Eróticas

Para o volume VII, Pires preparou uma introdução ainda mais alentada, traçando o itinerário das edições de Poesias Eróticas, Satíricas e Burlescas, que ganhou a luz pela primeira vez em 1854, por iniciativa de Inocêncio Francisco da Silva, quase meio século depois da morte do poeta.

Na introdução, diz que as afinidades de “Cartas de Olinda e Alzira” com “Pavorosa ilusão da Eternidade” colocam por terra a tese de que o primeiro texto não seria da lavra de Bocage, como sustentou este articulista em texto que saiu n´O Primeiro de Janeiro (Porto), em 18/3/2002. Mas é claro que afinidades não provam nada, pois continua a ser, no mínimo, estranho que alguém tenha dado, em 1825, “Cartas de Olinda e Alzira” como traduzidas de Voltaire por Bocage, como se vê no códice 10576, pág.81, da secção de Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa, ainda que uma busca feita por Pires na extensa bibliografia do autor francês tenha sido infrutífera. Talvez seja o caso de se pesquisar mais na França.

O que intriga ainda mais é que “Cartas de Olinda e Alzira” não tenham nenhuma referência a personalidades e geografia portuguesas, enquanto na “Pavorosa” o autor pelo menos introduz si mesmo no poema quando cita seu nome arcádico (Elmano). Poder-se-ia argumentar que a situação de clandestinidade a que estavam sujeitos os dois poemas obrigaria o autor à prudência de não se revelar nos textos, mas essa argumentação teria de ser válida também para a “Pavorosa”, que correu de mão de mão tanto quanto “Cartas de Olinda e Alzira”.

A propósito do soneto “Já Bocage não sou...”, Pires diz, à pág. XXXVIII do volume VII, que tem sido posta em causa a sua autoria, sem que haja fundamento, mas a verdade é que a maneira como o poeta renega a sua obra, pedindo à “gente ímpia” que rasgasse seus versos e cresse na eternidade, leva a duvidar de sua autenticidade. Não foram poucos os que duvidaram de que o poema tenha sido obra de um algum poeta afinado com a ordem estabelecida que quisesse que a imagem de Bocage que ficasse para a posteridade fosse a de um homem arrependido de seu passado de rebeldia. A hipótese não é tão infundada assim.

Já em nota de rodapé à pág.5 do volume I, Pires, a propósito do poema no qual os biógrafos — inclusive este que escreve — se basearam para estabelecer a data a morte da mãe de Bocage, dá a informação exata de que Mariana Joaquina Xavier Lustoff du Bocage morreu a 5/8/1774, pouco antes de o poeta completar nove anos. No soneto, Bocage dizia que, “aos dois lustros”, a morte havia levado a mãe. Vale a correção.

Por tudo isso, só se pode elogiar a disposição de Daniel Pires de se entregar à hercúlea tarefa de reeditar toda a obra possível de Bocage e até mesmo alguns ataques violentos ao poeta, perpetrados por seus inimigos. Ficamos, agora, no aguardo dos demais volumes da Obra Completa, que, esperamos, não deverão tardar.

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BOCAGE: OBRA COMPLETA, volumes I: Sonetos, e VII: Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas, edição de Daniel Pires. Porto, Edições Caixotim, v. I, 425 págs., 2004; v. VII, 248 págs., 2004. E-mail: edicoescaixotim@mail.telepac.pt
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*Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br
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