Roma pagã. No Coliseu, milhares de cidadãos, com expressões malignas, amontoam-se em suas arquibancadas. Embaixo, na arena, homens, mulheres e crianças são destroçados por garras e mandíbulas felídeas. Enquanto dura o espetáculo de sangue e horror, a plateia, em êxtase, grita: "Morte aos ateus!".
Sim, como bem lembrou a teóloga Karen Armstrong (Uma história de Deus, Companhia das Letras, 1994, p. 107), os cristãos, na Roma antiga, eram considerados ateus – por desacreditarem na existência das divindades do Império, tidas como ídolos ou falsos deuses; por não reverenciarem o César como dominus ac deus; e também porque, para os romanos, um deus único "em estado gasoso" era-lhes contraintuitivo, destoante do bom senso da época.
De fato, a palavra "deus" é problemática do ponto de vista semântico, talvez polissêmica, uma vez que serve para designar entidades díspares: uma paleolítica minhoca-totem; o elefante cor-de-rosa (Ganecha) do hinduísmo; as quimeras egípcias; os césares (Tibério, Calígula, Nero entre outros tiranos sádicos); os parentes mortos dos árias; o ancião IHWH - que ceava na mesa de Abraão e se autoproclamava "o deus dos deuses" (Deuteronômio, 10; 17); o primeiro motor de Aristóteles; a natura naturans (geratriz da natureza) de Spinoza; a mão de Maradona…
Atualmente, mesmo em Estados laicos, não é incomum manifestações antiateístas raivosas, inclusive respaldadas por setores da mídia, como a que ocorreu em nosso País, há pouco tempo, sob a batuta de um apresentador de noticiário policial. Nesses pogroms, em discursos prenhes de ódio totalitário contra o Diferente, os ateus em geral são demonizados, apontados como criminosos reais ou potenciais, acusados de imorais em princípio e de niilistas incorrigíveis. Diga-se que, no Ocidente, e para esses religiosos supostamente "do Bem", os ateus vilipendiados não são os que descreem dos deuses pagãos (estes há muito foram renegados pelo monoteísmo abraâmico como ídolos inanimados ou demônios), mas do Único judaico-cristão: aquele cujo passado negro – incomensuravelmente mais preto que o da presidente Dilma – jaz registrado no Velho Testamento; e que, como dizem, escreve certo com linhas tortas e caligrafia tão ruim que não é possível decifrá-la (vendo templos desmoronando sobre fiéis, fica difícil distinguir o misterioso solilóquio de Iavé daquilo que Shakespeare, em Macbeth, chamou de "parolagem furiosa e sem sentido de um idiota").
A propósito, o ateísmo que surgiu na esteira do iluminismo (o de Marquês de Sade é exceção) não tinha por objeto a libertação das "amarras" morais e entrega ao "vale tudo" vaticinado por Ivan Karamazov, personagem de Dostoiévski. Ao contrário, foi o fato de a religião ter se revelado um instrumento de dominação e exploração pelo terror – suas divindades cruéis tornavam a existência mais medonha do que era na realidade – que muitos homens "justos e bons" converteram-se ao ateísmo.
Para os ateus modernos, a moral não carece de justificação sobrenatural. Creem eles – sim, tal ateísmo, embora racionalista, também é uma crença – que suas raízes estão fincadas no coração do homem; vale dizer: é da nossa pulsão gregária, empatia pelo semelhante, curiosidade pelo estranho (atração pelo estrangeiro, pelo outro) e desejo de autonomia que os grandes valores se alimentam. De resto, lembro que as qualidades mundanas acima citadas são comuns a teístas, ateus, agnósticos (entre os quais me incluo), petistas e tucanos. Que se sobreponha, então, esta unidade, e não a unicidade.
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