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sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Novos narradores brasileiros (1)

Nilto Maciel


Recebi, nos últimos dias de 2010, quatro livros de prosa de ficção. Todos de escritores desconhecidos e novos. Desconhecidos da crítica, dos divulgadores de livros, dos professores, dos leitores. Como a grande maioria dos escritores brasileiros. Alguns têm aparecido em blogs ou revistas eletrônicas. E é por isso que os conheci. Como conheço centenas de poetas, contistas e romancistas.

Os quatro volumes são: O olho da fechadura (Rio de Janeiro: Multifoco, 2010), de Angela Schnoor; Anéis de Saturno (Clube de Autores, s/d), de Marcia Barbieri; Desatino (Porto Alegre: Sulina, 2002), de Leonardo Brasiliense; e Um (Brasília: LGE Editora, 2009), de Geraldo Lima.

O primeiro é constituído de pequenos contos. Um deles tem apenas duas linhas e se intitula “Desejo de sapo”. Uma beleza de síntese, em recriação da fábula famosa: “Quando a princesa decidiu beijar o sapo, ele foi mais rápido e seu desejo se concretizou: ela transformou-se em perereca!” A lembrar também o axioma filosófico: “O belo para o sapo é a jia”. Há contos de três, quatro, cinco linhas. Quando alcança dez, é um exagero. Angela é econômica ao extremo. O conto que dá título à coleção – "O olho da fechadura" – é exemplar: “Lembrava bem de si, na ponta dos pés, espiando pela fechadura do quarto dos pais. Já homem-feito, como suas costas doessem ao se envergar, abriu um novo buraco num ponto mais alto. Sozinho na antiga casa, velho e covarde espectador da fida, continua a espreitar o vazio de sua existência pelo olho da inútil fechadura”. Não trata apenas de voyeurismo, mas também de solidão, angústia, timidez. Portanto, um conto de aprofundamento, de mergulho no interior do ser. Todo o conjunto é de muita gostosa leitura. Porém, como ler não é só prazer, as pequeninas histórias de Angela Schnoor são pancadas no lombo dos que dormem até quando outros morrem soterrados.

A outra voz feminina desta resenha é da paulista Marcia Barbieri. Tem publicado contos e minicontos em blogues e revistas eletrônicas. Com Anéis de Saturno (Contos circenses) dá um salto de espetáculo para o palco da Literatura Brasileira. Entretanto, por inexperiência ou falta de orientação, apresenta um livro incompleto: sem ficha técnica (cidade, editora, ano de publicação da obra) e dados biográficos. A segunda edição poderá corrigir esses defeitos. Nada a reclamar, porém, da substância literária. A contista faz uso do diálogo sem se perder em trololó de novela de televisão, embora não se valha de novas técnicas, ainda apegada ao antigo travessão do diálogo direto. Mas, pelo menos, aboliu os verbos dicendi. A narração flui com lentidão, sem a pressa de alguns “transgressores”. Tudo com certo ar de pintor, que mistura narração com descrição: “Costumo olhar a rua debruçado no parapeito. Olho para o velho sentado imóvel na cadeira”. E epílogos poéticos: “Quanto a mim, ainda construo gaiolas, mas não crio mais pássaros. Tudo que voa, pode, de repente, criar asas”. Valeu-se, ainda, Marcia Barbieri do expediente de escrever e reunir num só volume vários contos de um mesmo tema, à maneira de romance sem linearidade temporal e composto de quadros (capítulos) ao mesmo tempo independentes entre si e coligados pelo enredo, de que Vidas Secas é o melhor exemplo no Brasil. E foi além: criou personagens de uma mesma categoria (trabalhadores de circo): palhaços, mágicos, mulher-barbada, domador de leão, etc. Não retratos desses tipos, mas pinturas de suas almas, suas angústias, suas alegrias, suas dores, seus prazeres.

O gaúcho Leonardo Brasiliense é autor do terceiro volume de contos aqui comentados com parcimônia de leitor preguiçoso e incapaz de se aproximar da crítica. Desatino, que também pode ser lido como Destino, com a supressão do “a” sugerida na capa e na folha de rosto, divide-se em seis partes ou contos subdivididos. Nas abas, Valesca de Assis opina: “Persistindo num modelo estético já anunciado em Meu sonho acaba tarde, em que a estranheza e o reverso das coisas é uma constante, Leonardo Brasiliense está construindo uma carreira cuidadosa, segura, porém não acomodada. Quem, como ele, aborrece o trivial, quem, como ele, propõe um olhar sempre oblíquo, jamais assumirá o risco de copiar a si mesmo, esse pesadelo que assombrava gênios como Pablo Picasso”. Os personagens de Leonardo não são inventados, mas também nada inventam. Cumprem um destino. Como diz o narrador de “A fortuna”, parte 3: “Antes de aqui achegar, porém, o destino acenou-me com uma segunda oportunidade, ele, brincalhão, que se diverte sempre, não distinga quem ganhe, quem perca, ele que ri, antes e depois, caprichoso, assanhado, gracejão”. Desatinados ou destinados a vidas sem eira nem beira, os seres criados pelo contista são semelhantes às criaturas reais, as que andam por aí e morrem nas esquinas. E, ele, o criador, sabe o que faz. Ou o que escreve. Porque escreve bem como poucos.

O goiano Geraldo Lima, que também é contista, se apresenta com o romance Um, segmentado em oito partes. O narrador aparece “estressado, enfastiado, marcado pelas refregas com o cotidiano”, num apartamento. Debate-se em dúvidas, meditações, até se ver diante da “face luminosa de Deus”. Crente, vê, num porta-retrato, a figura da mulher Ana e seus “dentes que, sob o transe do amor, mordiam os meus lábios até sangrarem”. Mas Ana se foi, “com todos os seus pertences / com os risos de dentes alvos / com as carícias de fogo / os gemidos da carne em brasa / a alma oceânica, tempestuosa / derramando-se pelas bordas do copo”. Poesia dentro da narração. Esse narrador é leitor da Bíblia, de Camões, Drummond, Alberto Caeiro, William Blake e outros. E deve ser poeta. Não está só na trama: há também Ariadne, padre Artur, o pai e a mãe. O escritor Menalton Braff faz uma síntese da obra: “Um é um romance em que se convida o leitor a fazer um terrível mergulho no inferno em que vive Paulo, o protagonista. Ex-seminarista, acaba de passar por uma experiência mística, que o expõe de corpo nu (seria melhor dizer de mente nua?) vivendo em plena fogueira de seu conflito: de um lado, o desejo carnal em estado de violência, que o domina obsedante; de outro, a certeza de sua vocação espiritualizante, cuja realização exige-lhe pensamentos puros e castos, que já não pode alcançar”.

Como deixei claro, os quatro são escritores novos, porém feitos ou quase feitos. Pois ninguém nasce feito nem se faz completamente. Há sempre um passo a ser dado. Nem que seja para o abismo. Para mim, Marcia Barbieri, Geraldo Lima, Leonardo Brasiliense e Angela Schnoor caminham, pelo mundo das letras, a passo firme e poderão figurar longe da última fileira dos chamados para a brincadeira de inventar pessoas e coisas.

Fortaleza, 23 de janeiro de 2011.
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