Abstrato - Fernando Odriozola |
PREPARO UMA LUZ
Este chão já não tem limpeza possível.
Mia Couto
Vinte e zinco
Velo por minhas circunstâncias.
Estou nudo
das armas contemporâneas,
solene sobre o escuro estrado
no centro duma praça aberta
e cinza.
Nela há homens mais nudos que eu,
porém gozam do triste benefício
da profunda aniquilação.
O tempo, o mar que espia,
o homem que expia,
tudo parece praparado
para a triste glória dum tempo antigo
que hemos de ter.
Os ossos de minhas circunstâncias,
já os acendo:
preparo uma luz
para dias malditos ―
os em que pisaremos
o coração do irmão.
Abstrato - Flávio Shiró |
DADOS BRUTOS
Eu sou muitas pessoas destroçadas
MANOEL DE BARROS
Livro das Ignorãnças
I.
um dia
vinte e quatro horas
cem mil soldados
um sem-número de tanques
seis homens-bomba
um império
(que Deus [?] sempre o salva)
uma enfermaria
quinze crianças mortas
um pão para dois
(uma falta para tantos!)
um bilhão
uma bomba
pólvora
pedaços
poeira
povo
gente
(algo se esvai...)
um osso exposto
um grito
(o homem, por que não sara?)
um cão-vagador
uma nota na imprensa
dez estrelas aos ombros
um general
uma relatório
centenas de baixas
um despacho
um mercado abaixo
uma ponte abaixo
uma terra abaixo
(quantas indigências sob a vala rasa!)
um dia...
(arrastado desde o tempo dos tempos!)
pergunto:
evoluiremos do vírus
algum dia?
II.
Há no mundo um imundo cão-vagador
farejando a carniça dos que quedam rotos:
Deus bem pode ser um de seus nomes.
*Dércio Braúna é historiador, poeta e contista, autor de O pensador do jardim dos ossos (Expressão Gráfica e Editora, 2005), A Selvagem Língua do Coração das Coisas (Realce, 2005), Metal sem Húmus (7 Letras, 2008), Uma Nação entre dois mundos: questões pós-coloniais moçambicanas na obra de Mia Couto (Scripta Editorial, 2008), Como um cão que sonha a noite só (7 Letras, 2010). Contato: derciobrauna@bol.com.br.