Glauco Mattoso é recordista mundial de sonetos. Mais extravagante, porém, é o recorde de Bráulio, que jamais baixou seu padrão extraordinariamente alto na coluna diária que mantém no Jornal da Paraíba desde março de 2003. Lembro-me de que Millôr me decepcionou quando vi seu Pif-Paf – delicioso quando lido a cada semana – acumulado em livro, mal-estar que se repetiu ante uma edição capa dura com as tiras diárias de Flash Gordon. Temi o mesmo quando Bráulio me disse que premeditava “A Nuvem de Hoje”. Mas acabo de reler de uma sentada essa primeira leva de cem artigos seus, publicação da Latus – Editora da Universidade Estadual da Paraíba – constatando, grato, que o acúmulo deles apenas fez aumentar a enorme admiração que sempre tive pelo jornalismo cultural do nosso romancista de ficção científica, roteirista de TV e cinema, compositor, etc etc.
Bráulio pertence a uma categoria de paraibanos que leem muito, muito – como Luiz Carlos de Sousa, William Costa e Astier Basílio. Prova disso é que, nessa enfiada de textos relidos agora, pude sublinhar uma série de trechos de frases como
Robert Henlein, em seu volume póstumo de correspondência, “Grumbles from the Grave”...
“O Rio” (1953), de João Cabral, é descrito de forma cabal pelo seu subtítulo: “Relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife”...
Nos capítulos 5 4 6 do seu livro “Guerreiro Togado”, Pedro Nunes Filho mostra a origem dessa cadeia comercial.
No romance “The Translator” de John Crowley (2002)…
As primeiras linhas de “O fiel e a Pedra”, de Osman Lins, descrevem uma lâmpada assim.
Em “Revolution in the Head”, Ian MacDonald descreve…
O episódio ( no 1º. Livro de Samuel) pode ser visto de outra forma...
A descrição de Eric Temple Bell em “Men of Mathematics” é de cortar o coração...
Quando li o livro de Josué Silvestre, “Lutas de Vida e Morte – Fatos e Personagens da História de Campina Grande 1945-1953”...
No livro “Editora Globo”, sobre esta casa editorial gaucha, Elizabeth Torressini transcreve....
Em seu saboroso e enriquecedor livro “Tropicalista Lenta Luta”, Tom Zé afirma a certa altura...
Em seu magnífico livro “O Rastro dos Cantos” (“Songlines”, de 1980), Bruce Chatwin estuda a mitologia dos aborígenes australianos...
Conclusão: cultura livresca? Nem pensar. Ao contrário do que parece no rosário que desfiei acima, bateado na centena de textos de “A Nuvem de Hoje”, Bráulio demonstra, na grande maioria de seus artigos, paixão maior ainda pelo conhecimento peripatético – itinerante – apregoado pela escola de filósofos atenienses liderados por Aristóteles. Confira:
Vejo as ceguinhas (do filme “A pessoa é para o que nasce”) cantarem nas ruas de Campina, desde que me entendo de gente. Na feira, na Maciel Pinheiro, na calçada da Catedral ou da Livraria Pedrosa, ali estavam elas, desfiando suas cantigas e sacudindo seus ganzás.
Nos velhos tempos, vi bêbados anônimos, mecânicos de oficina ou boêmios aposentados recitando versos de Augusto dos Anjos nos botequins da rua Índios Cariris, no antigo Caldo de Peixe do velho Ferreira, no bar do Castelo onde comíamos costela antes de ir para o Amigão; na Riviera durante um “rato” e uma Casa Grande, no Corredor da Morte diante de uma cabeça-de-galo, ou amanhecendo o dia no abrigo da Praça da Bandeira, rebatendo a cerveja gelada com um cuscuz-com-galinha, pedindo um cigarro a um notívago sem rosto e ouvindo-o recitar: “Toma um fósforo..."
Arretado!
Éramos em geral uns cinco ou seis, mas lembro de bacuraus mais concorridos que tinham o dobro disto. O bacurau do Cine Capitólio era um prolongamento natural da “segunda sessão”, a última sessão noturna que acabava às 11 e pouco. As discussões sobre o filme, às vezes, incluíam uma ida rápida a uma lanchonete, mas o traço distintivo do bacurau é que ele prescinde de bares ou coisa parecida. O bacurau é praticado ao ar livre, de pé, e quem cansar que sente no batente da loja.
Muita coisa que sei de Cantoria foi o mestre Ivanildo Vila Nova que me ensinou. Naquele tempo, quando eu tinha 25 anos, ele 30, passamos muitas tardes ou noites num balcão de bar, eu tomando cerveja, ele tomando café, e conversando sobre qualquer assunto: nossas vidas, a vida alheia, Campina Grande, política, futebol, mas principalmente poesia.
Quando fui morar em Belo Horizonte, nosso ponto preferido era na Praça Afonso Arinos, em frente ao Hotel Del Rey.
Nunca conheci Dimas Batista ou Belarmino de França, mas fui amigo de Louro (Lourival Batista) quando ele já tinha 60 anos.
Conversamos (eu e Vladimir Carvalho) há poucas semanas, aqui na Rua do Catete (a mais nordestina das ruas do Rio) e ele me pareceu com os quarenta e poucos de sempre: o passo rápido, o gesto inquieto, a cabeça elétrica.
Retrato notável!
Ando de ônibus até hoje e, em cada um dos meus percursos rotineiros, tenho os “palcos” onde sempre está acontecendo algo interessante, algo que me mantém curioso e alerta, que não me deixa ligar o piloto automático e desperdiçar alguns minutos que eu poderia aproveitar melhor pensando, imaginando, tendo ideias.
Eu nunca moraria em Brasília, porque não dirijo carro, e aquela é uma cidade em cujas veias circula gasolina, não foi feita para pedestres, flâneurs, noctâmbulos ou peripatéticos.
Mas por quê isso? Ele diz:
As perguntas que a Rua nos fará nunca são as que esperávamos.
Resultado: respostas inesperadas. Tal sistema de criação – em que à vida real, popular, se une uma base que não se percebe, mas é erudita – desemboca numa permanente originalidade, em que o conhecimento é, sempre, de primeira mão. Some-se a isso uma honestidade absoluta:
Os motes escolhidos pelos membros da comissão eram datilografados, envelopados e colocados no tal envelope pardo que, durante as 72 horas seguintes, ficava embaixo do meu braço, porque eu não queria correr riscos. Já cheguei a dormir com o envelope embaixo do travesseiro.
Venho lendo o “Ulisses” de Joyce há décadas. Nunca o li por inteiro, mas há capítulos que li 15 vezes.
Ou seja: Bráulio adquiriu, ao longo da vida, uma capacidade seletiva enorme. Claro, pois quem – tão aberto a tudo – poderia dar conta do volume incomensurável de informações que recebe do mundo? Veja este trecho, soberbo, dele:
Um oceano de informação. O problema é que o oceano é tão grande que podemos mergulhar nele e descer verticalmente centenas de metros SEM NUNCA ABANDONAR A SUPERFÍCIE. A superfície dele não acaba, é um oceano só superfície, sem profundezas.
Que fazer? A solução é ter, para si – como ele diz - , uma “estética da recepção fragmentada”, daí sua franqueza ao dizer que jamais leu “Ulisses” inteiro. Acho comovente o trecho de um de seus artigos, em que – depois de dizer que deve a poesia ao pai, a prosa à mãe – ele fala do que deve ter sido a descoberta desse sistema que adotou por toda a vida:
Agachado junto às estantes e aos balcões da Livraria, sob o olhar sempre vigilante e sempre condescendente de seu Pedrosa, desenvolvi, desde menino, a arte de ler um livro por fora, quando não podemos comprá-lo: ler a contracapa, a orelha, o índice, o prefácio, as legendas das ilustrações.
Essa fase marcou-o. Ele fala com entusiasmo dos folhetins de capa-e-espada de Michel Zevaco, que devorou naquela época, e de como o nome de um dos personagens dessas estórias – Corpodibale – fez com que tivesse a “ideia estapafúrdia” – ao saber do “Corpo de Baile”, do Guimarães Rosa – de que o mineiro também lera Zevaco.
Quando o artista criador tem uma bússola intuitiva que lhe dá a certeza subconsciente do que quer, ele reconhece, de imediato, entre os fragmentos trazidos pelo acaso, aqueles que o levam na direção certa.
Daí que ele descobriu, triunfante, outros nomes zevaquianos – Strapafar e Trinquemaille – nestes trechos do “Grande Sertão: veredas”:
“Ah, eu ia ver se, no engasgo da hora, ele ia querer se estrapafar.”
“Cantava o trinca-ferro”
E veio a confirmação de tudo:
Rosa tinha, em sua biblioteca, uma edição francesa de “Les Pardaillans” de Zevaco (conforme Suzi Frankl Sperber, “Caos e Cosmos”).
Nonadas?
Não. De sacadas assim é que ele tira conclusões afiadíssimas:
A Cultura é aleatória, a Educação, planejada. A Cultura é difusa, a Educação é focalizada. A Cultura está em toda parte, a Educação se dá em recintos específicos.
Qual é o contrário de Música Erudita? Eu diria que é “Música Espontânea”.
Quando Gil e Naná prestam homenagem às ceguinhas no palco do PercPan, o que temos ali é a gasolina de avião pedindo a bênção ao petróleo bruto de onde foi extraída.
Chico César, apesar de surgido nos anos 1990, tem uma sonoridade mais parecida com a dos anos 1970 do que com a dos seus companheiros de geração.
Qual o segredo de uma boa sextilha (com suas seis linhas de 7 sílabas cada, a segunda, a quarta e a sexta rimando entre si?) É saber derramar o texto nessa fôrma como quem derrama água num copo, sem sobrar nem faltar uma gota.
Perfeito!!!
E do que se precisa, pra se fazer uma ficção científica?
Saber que seu objeto não é a espaçonave, mas a Viagem; não é o alienígena, mas o Estranho; não é o robô, mas o Duplo; não é o computador, mas a Máquina; não é o monstro mas o Inconsciente; não é o mutante mas a ruptura de conceitos e a transcendência rumo a uma realidade mais complexa.
Tudo seria pouco, não fosse o texto primoroso em que Bráulio aveluda suas jóias:
Eram negros imensos, com tórax de barril e cada rebolo de braço maior que o do Superman.
Consumimos um Iraque de gasolina. (...) Consumimos uma Áustria de cerveja
As ceguinhas sempre estavam em algum ponto do triangulo compreendido entre o Teatro, a Catedral e o Edifício Rique. Quando a gente se aproximava, mesmo antes de vê-las, mesmo a distancia, já começava a ouvir seu tríduo de vozes rusticamente harmonizadas, carregadas daquela melancolia milenar de quem pede cantando.
Putz!
O mundo de Olavo Bilac nos lembra uma imensa galeria do Louvre cheia de quadros históricos e de langorosos nus femininos, pintados por Courbet, Degas, William Bouguereau, Alma-Tadema. (...) Já o de João Cabral nos arrebata para um deserto árido e cheio de arestas, povoado por cabras e retirantes; mangues pegajosos, cidades rústicas que mal se distinguem das colinas pedregosas que as cercam. (...) Lembra a fase de gravuras geometrizantes de Max Ernst, ou as xilografuras de cortes brutais de Segall, Scliar ou Darel.
Mas... bem. Depois de flagrarmos o menino Bráulio sacando o que podia da Livraria Pedrosa, ele nos presenteia com o momento em que o cinema – uma de suas muitas paixões – desperta, nele, o crítico perspicaz em que se tornaria, após a exibição do filme “O Corvo Amarelo”, de Heinosuke Gosho no cinema de arte do Capitório, em 67:
Depois que (os personagens) partem, a câmara se detém num chapéu de palha que fica abandonado na areia. E surgiu a pergunta terrível: “Por quê?” Usei este filme para escrever minha primeira crítica de cinema, que nunca foi publicada.
“A Nuvem de Hoje”.
Trata-se de uma seleção de colunas já publicadas, destinadas à História Literária da Paraíba. Eu já me servi de uma imagem digna dos folhetins que encantaram a infância de Bráulio algumas vezes, mas aqui está ela, de novo: se eu tivesse um chapelão emplumado, como o de Cyrano ou D´Artagnan, eu me curvaria, agora, ante ele, descobrindo a cabeça, no que faria minhas plumas arrastarem-se pelo chão.
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