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terça-feira, 12 de abril de 2011

Um pensador e ficcionista português: Agostinho da Silva (Alaor Barbosa*)

(Agostinho da Silva)


Pensando bem, posso dizer que a vida me tem proporcionado, com bastante generosidade, o privilégio de conhecer grandes homens. Um deles foi, com certeza, Agostinho da Silva – um respeitado pensador português (que não se considerava propriamente filósofo, apesar de muitos lhe atribuírem, com ponderáveis razões, essa condição intelectual), professor emérito, ensaísta literário e, verifiquei nos últimos três dias, valoroso ficcionista. Eu o conheci em julho de 1992, em Lisboa, no seu apartamento em um pequeno (se não me trai a memória) edifício localizado bem perto da Basílica da Estrela em um trecho muito simpático de Lisboa: tranquilo e pouco movimentado, embora próximo do centro da cidade. Mas não foi somente por causa da relativa brevidade do trajeto que eu e minha mulher voltamos a pé para o Largo do Rossio, onde estávamos hospedados: andar a pé em qualquer cidade é sempre para mim um indizível prazer a que dificilmente renuncio. Acresce que em Lisboa esse prazer se intensifica, por causa do infinito número de valiosas e tocantes descobertas que nos surpreendem a bem dizer a cada passo. (Nessa volta ao Rossio aprendi, por miúdo exemplo, pegando e vendo um exemplar em uma loja, o que é mesmo essa coisa chamada peúga. E em uma ourivesaria antiquíssima recolhi, com habilidade, uma breve aula sobre os quilates que identificam a qualidade do ouro.)

Procurei o Professor Agostinho da Silva a fim de cumprir uma pequena missão: entregar a ele 200 dólares mandados em espontânea doação por um amigo dele, Eduardo Kanan Marques, um gaúcho de Porto Alegre também amigo meu desde que entramos a conviver diariamente no Senado Federal, na Consultoria Legislativa, a partir de fevereiro de 1985. Eduardo Kanan, matemático que ama (e conhece bem) Literatura e devotado e exigente e rigoroso cultor da língua portuguesa, transplantado para Brasília em 1963, fora uma espécie de discípulo, além de admirador e amigo, do Professor Agostinho da Silva na Universidade de Brasília. Num me recordo se foi antes ou depois dessa época que o Professor Agostinho se estabeleceu em Salvador, Bahia, onde atuou na Universidade Federal. Brasília e Salvador são as duas cidades onde Agostinho da Silva trabalhou no Brasil por alguns anos, semeando ideias e lições e fazendo admiradores numerosos. Quando soube que eu ia a Lisboa, Eduardo Kanan Marques me pediu que levasse 200 dólares para Agostinho da Silva. Com certeza uma boa e sempre oportuna dádiva para um professor aposentado, que tinha, naquele ano de 1992, oitenta e seis anos de idade, nascido que fora em 1906, na Cidade do Porto - por tanta gente aclamada como Cidade Invicta.

Cheguei em Lisboa em um dia e no outro dia, antes da hora do almoço, quer dizer, ainda de manhã, parti (peguei táxi? num lembro) com minha mulher à procura do sábio português. Eu possuía, desde algum tempo antes, um livro de sua autoria, o qual eu não tivera o recomendável cuidado de ler antes da viagem, intitulado Um Fernando Pessoa, composto de estudos críticos e de uma antologia bastante particular; e o conhecia principalmente das referências constantes que lhe fazia o mesmo Eduardo Kanan e da difusa fama que ele desfrutava em Brasília. Encontrei com facilidade o prédio onde ele morava. Esqueci se tinha elevador. Diante da porta do apartamento, toquei a campainha. Sem demora, a porta se abriu e diante de mim apareceu, enquadrado na moldura da porta, um homem não muito mais alto do que eu (portanto quase baixo), meio vermelho, ágil e vivo, olhos atentos, cabeça um pouco branca com os cabelos cortados curtos, o semblante um tanto risonho para ser gentil, barba parecia que de poucos dias meio branca. Num me lembram as palavras com que ele deve ter indagado quem eu era. Notei que, no interior do apartamento, sentada num sofá ou poltrona, havia uma mulher. Eu me identifiquei como um brasileiro chegado “ontem” a Lisboa, amigo de Eduardo Kanan Marques, de Brasília, e portador de 200 dólares que Eduardo lhe mandara. Agostinho da Silva referiu-se com muita simpatia a Eduardo Kanan, mas me desconcertou um pouco porque não notei na fisionomia dele nenhuma reação provocada por minha referência ao dinheiro que eu lhe levava. Ele disse “Muito bem, muito bem”, e como que esquecido dos dólares apressou-se em me advertir que infelizmente não podia me receber por muito tempo, pois tinha uma visita. Antes que eu acrescentasse o que queria acrescentar, a mulher – gentilmente – lá da poltrona disse a ele: “Professor, o senhor pode receber o brasileiro. Fique à vontade. Podemos conversar depois”. Eu acrescentei então que, sendo autor de alguns livros, queria aproveitar a ocasião e lhe oferecer um deles, e fiz menção de tirar o livro da minha pasta. “Ah, o senhor tem um livro para mim? Vamos entrar, vamos entrar, por favor”, ele disse com os olhos brilhando de interesse intenso. Reparei naquilo: um livro causava o efeito que os dólares não produziram. Entramos. Ele nos indicou duas cadeiras, e nos apresentou à mulher – que ele disse ser professora - com quem vinha conversando. Ela disse alguma coisa com bastante simpatia, que não recordo. Observei que era uma mulher podia-se dizer que bonita, com idade entre quarenta e cinqüenta anos. Nos sentamos, eu e Maria. Mirei o rosto da mulher e me perguntei (ah a imaginação e malícia do homem!) se ela num era namorada dele, pois me pareceu uma visita não tipicamente ocasional. Entreguei ao Professor Agostinho as cédulas, acho que duas, dos dólares, que ele pegou com visível satisfação e proferindo palavras de gratidão a Eduardo Kanan. Peguei um exemplar do meu romance O exílio e a glória, editado doze anos antes em Goiânia, e, apoiado na pasta, redigi uma dedicatória. Ele recebeu o livro com um entusiasmo manifestado em exclamações que me davam a entender que aquele era um presente muito importante para ele. “Muito obrigado, muito obrigado. Vou ler com o maior interesse. Que gentileza, a do senhor, me dar um livro seu!” (E ele leu mesmo. Me escreveu algum tempo depois uma carta muito boa, lúcida e compreensiva sobre meu romance. Infelizmente num sei onde se encontra essa carta, talvez escondida entre minha papelada. Para lê-la, tive de pedir a Eduardo Kanan que a “traduzisse”, pois a letra de Agostinho da Silva se revelou para mim quase ilegível.) Ele pôs o livro educadamente de lado a fim de conversarmos. Me pediu notícias de Eduardo Kanan e informações a meu respeito: onde eu morava, o que eu fazia em Brasília, etc. Conversamos por bastante tempo. Devo ter ficado lá quase uma hora, mais ouvindo do que falando. Foram vários os assuntos. Agostinho da Silva, notei logo, era um homem que gostava de conversar – prosear, como aprendi a falar com meu pai em Morrinhos. Ele falava com uma animação jovial e gesticulava com uma certa lepidez que lhe contradizia a idade. Das muitas coisas que ele me disse, retive esta: “Sabe que fizeram os cálculos e verificaram que o último alemão vai morrer dentro de cem anos?” Ele me explicou que a população alemã vinha diminuindo progressivamente e que já se sabia que dentro de cem anos (contados daquele ano, 1992) morrerá o último alemão. Confesso que botei essa informação em suspenso, movido de um certo ceticismo e cuidado que costumo ter com essa espécie de previsão, embora intimamente eu me recomendasse não duvidar de um homem tão sério quanto Agostinho da Silva. E eu me pergunto por quê, das várias informações e reflexões que dele ouvi, gravei apenas esta sobre o deperecimento progressivo do povo alemão.

Agostinho da Silva, autor de vários livros de Filosofia, publicou em 1953 um volume de novelas, com o título Herta, Teresinha, Joan, ou Memórias de Mateus Maria Guadalupe, de cuja terceira edição, de 1989, Eduardo Kanan, em generosa diligência, me mandou um exemplar há 14 anos. Somente agora o li. Foram duas as minhas surpresas: verificar que Agostinho da Silva escreveu ficção e a ótima qualidade dela. Narrativas vazadas em bela linguagem, com inteligente bom-humor, e estruturadas com muita eficácia literária. Forte, fortíssima poesia de quem conhecia bem a vida e particularmente as mulheres. As mulheres suas personagens despertam amor no leitor, principalmente Teresinha. E é um tanto desconcertante e enigmático verificar, ao final de cada uma das novelas, que o personagem Mateus não amou com amor completo nem uma das mulheres tão dignas de amor que lhe aconteceram na vida: ele num ultrapassou os limites da admiração a distância, sem a coragem dos contactos físicos. Agostinho da Silva ficcionista pode ser posto, quanto ao aspecto da qualidade das suas criações, na galeria de Eça de Queiroz e Camilo Castelo Branco. Pena que produziu pouca ficção.

Esse homem extraordinário faleceu três anos depois da minha visita – em 1995. Recordo que sua morte foi um acontecimento muito sentido em Portugal. Ao seu sepultamento compareceu o Presidente da República – Mário Soares, um intelectual, filho de um professor de liceu e autor de um compêndio escolar, História de Roma e da Idade Média, João Soares. Ele vem sendo cada dia mais valorizado em Portugal. Ainda agora, remetido por Eduardo Kanan Marques, vejo um livro sobre ele, Agostinho da Silva – Um perfil filosófico, escrito por João Maria de Freitas Branco, um professor português de Filosofia, editado em 2006 pela Associação Agostinho da Silva e pela Editora Zéfiro, de Portugal. (Dois outros livros sobre Agostinho da Silva, além de um volume de “cartas inéditas” dele, são noticiados nesse livro.) No Prefácio, o escritor Manuel Pina diz coisas bastante expressivas a respeito de Agostinho da Silva. É útil transcrever algumas: “Um homem que não aceita nenhuma forma de dogmatismo, recusando os pensamentos feitos e os juízos definitivos, com uma preocupação constante pelo futuro do mundo. (...) Um homem que incitava ao pensamento sem quaisquer constrangimentos, para que cada um possa ser aquilo que realmente é; um homem aberto a todas as propostas, contraditório, cultivador do paradoxal. (...) Um homem apaixonado pela vida, pela companhia e pela conversa, sempre com um humor certeiro e provocante e uma alegria contagiante”.


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*ALAOR BARBOSA, jornalista e advogado, é autor de Contos e novelas reunidos e, inédito, A guerrilha da Serra de Caldas; e dos romances Vozes e silêncios em Imbaúbas: a morte de Cornélio Tabajara; Memórias do nego-dado Bertolino d’Abadia; Belinha: uma lenda; Eu, Peter Porfírio, o maioral; e, a sair, Vasto mundo. Membro da Academia Goiana de Letras e da Academia de Letras do Brasil e do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal.

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