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sábado, 4 de junho de 2011

Da boca vinha uma brisa (Nuno Gonçalves)


da boca vinha uma brisa, uma fresca com gosto de rede. da boca vinha uma espera que em nada lembrava promessa, uma ardência lambuzada de melancolia, vinha algo difícil de descrever. ao menos com essas palavras que me deram, essas que vêm desde antes mesmo d’eu nascer. às vezes me sinto um rio largo desesperado com as águas das chuvas, com sua insuficiência em matar minha sede e aplacar a fúria do sangue de minha memória. daquela boca vinham tempestades, lembro um dia que dela saiu uma asa, aquela boca era uma rota,
uma bússola: a imagem refletida do norte. tudo nela era oriente, como se fosse Eva antes da morte ou como um macaco navegando no tempo. me faltam palavras me falta forma, mas larva não falta. me faltam forças físicas – sim, verdade que envelheci – mas não me falta desejo. lembrança também não me falta. e mantenho desperto todo o erotismo da pele. sinto meus ossos e o tutano que lhes preenche. sinto tudo. sinto demais. apesar de decadente estou a um passo de uma nova erupção. já sei da morte o charme irresistível, a sedução que transpira tudo que é inevitável. já sei da boca o beijo que vem de outro lugar, como uma onda ou um raio, como a erva que canta se pensando pássaro ou como o destino que se sabendo amargo insiste em caminhar com passos de baile. era linda a boca. eram lindas as faíscas e frestas dos lábios. era uma boca com muitas estórias, sonhos de línguas desaparecidas e veredas com pontes de cordas. à noite a boca abrigava estrelas e o sol se recolhia na sombra da lua. nunca soube se era aurora ou asa de arara, nunca soube de nada. às vezes tinha gosto de terra clamando com fome de chuva àquela palavra nova para dizer o indizível; em outras eras silêncio, vastidão, recolhimento. o corpo esparramado sobre os cactos sobre o cascalho sobre a música do chocalho da Cascavel. a boca era também um coral, fundo de oceano antigo: cama de baleia. a boca já não respira e essa certeza atravessa o miasma como uma espinha. a boca já não respira e na terra arrasada arrasto minha insônia de garganta em garganta como gigante enfeitiçado. da boca só se sabe o ontem: o que ainda não chegou e sendo espera renega qualquer promessa. da boca todo hálito escapa como sono que nenhum trovão desperta. na boca todo querer é pleno e todos os tempos navegam num mesmo movimento. a boca é um corsário que sobreviveu a todos os naufrágios. a boca é minha mas me possui com tal artimanha que até mesmo os monges se enganam. sou a boca engolindo o fogo da vela ou as flores do aniversário do velho poeta. a boca rumina a luz das esferas, mastiga com seus dentes cravejados de prata as margens da infância destilada. a boca é o princípio do mundo. o precipício de tudo. onde o salgado se reconhece salgado. onde a nuvem se assemelha ao açúcar. onde começa e termina todo fardo. a boca é anterior ao parto. a boca é um troço estranho demais, apesar de existir no passado sua sombra se encontra por todos os lados. a boca joga dados como o acaso. a boca se defende com dardos. a boca é um arco, como o tempo – ou um mito: como as vísceras de um astro.
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