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sábado, 27 de agosto de 2011

L'après-midi d'un faune (Nilto Maciel)



Hoje quero dedicar o dia a Ronaldo Werneck. Ou aos três livros que me enviou recentemente. Antes, porém, preciso contar uma história: Comprei um relógio, que, de hora em hora, me convoca para a vida. Um chato! Mas necessito dele como gato não pode prescindir da língua para se lamber e limpar. Não fosse ele, o relógio, coitado de mim!, estaria entrevado, torto, cego, só pele e osso. Pois quando me ponho a ler, escrever, ouvir música, ver filmes, documentários, entrevistas, perco a noção do tempo e deixo de me alimentar, tomar banho, beber água, suco, caminhar, cumprir obrigações mercantis, telefonar para minha irmã mais velha, cortar as unhas, podar a cara (resta um bigodinho ralo e branco). Não fosse ele, o relógio chinês que fala, eu estaria morto. Certamente apenas morto de corpo, pois minha alma está mais viva e atenta do que nunca. Porém, nem só da palavra vive o homem, mas também de pão.

Ontem, após o almoço, pedi permissão a mim mesmo para me afastar do relógio insistente. (Não pode ser desligado nunca, informou-me o vendedor. Por quê? Se o desligar, talvez nunca mais volte a falar, ou seja, a cumprir sua missão.) E o levei ao quarto dos fundos, onde jazem (será melhor dizer dormem) os poetas mortos. São três estantes de aço, do chão ao teto, repletas de poetas anacrônicos e esquecidos. Precisava escrever uma crônica (que é esta), sem ser atormentado ou alertado por nada e ninguém.

Entretanto, de nada adiantou tanta precaução minha. Pois exatamente às 14 horas, mal me sentei diante da tela do computador e olhei para os três objetos de que iria tratar na crônica, soou a sirena do telefone. Alô, quem é? Verônica Macedo. Lembrei-me dela, porém tinha me esquecido de tomar banho, tirar a barba, encher-me de perfume, vestir a melhor roupa de receber visitas femininas, atos que pratico, com esmero de dândi, uma hora antes de receber visita de moça, na vã esperança de seduzi-la – mas é tudo apenas ilusão de velho, posto que elas, as moças, só querem meu verbo, meu saber, minha fortuna escondida sob as cãs, e nunca sequer imaginariam atos de pura sandice que sátiros e ninfas praticam. Sim, venha. Estou a esperá-la. Mandara mensagens: queria me conhecer, conversar e ganhar uns livros, se não fosse pedir muito. Onde você está? Estou perdida na Rua Padre Anchieta, esquina com Leiria de Andrade. Dei-lhe a orientação precisa e voltei ao meu afazer. Passei a mão pela capa azul do primeiro volume: Há controvérsias 1, lido semana passada. Agarrei o segundo, o de número 2, mais volumoso, de capa vermelha, lido em seguida. Por último, aproximei dos olhos o livro de capa branca, lido ontem e hoje. Só então percebi o título (também em cor branca; só os cegos veem certas coisas, alguns seres e o invisível a nós leitores viciados em letras) Minerar o branco.

Dez minutos após aquela prosa das ruas, Verônica (imaginei-a loira, meio gordinha, cara de quem lambe ninfeta, olhos de passarinho perdido) acionou a campainha do portão de minha solitária. Vinha quase loira, magrinha, cara de quem acabou de escapar a um terremoto de nove graus na escala de Richter e olhos de bem-te-vi assustada. Passado o primeiro diálogo, ainda em estado de choque, olhei para meus livros. Você conhece Ronaldo Werneck? O “não” dela me fez estremecer dos pés ao cimo do Himalaia. Parecia “sim”, semelhava “sou”, e era a boca mais macia que meus olhos tinham visto nos últimos cem anos. Entreguei-lhe, com todo o cuidado do mundo, o primeiro volume, o azul. Que capa linda! Mirei as pernas, que me pareceram banhadas no Mar Egeu, lambidas por ondas azuis, e eu aquoso, líquido, liquidado.

Ronaldo Cagiano observou: “Há controvérsias abriga diversas vertentes: crônica, ensaio, crítica, livre-pensar, reflexão existencial, insights filosóficos, eurekas, invenção e memória”. Verônica saberia disso? Não gosto de crônica. Pois deveria gostar, menina. Li para ela trecho de Moacyr Scliar, nas abas do livro azul: “Esta capacidade de neutralizar a, muitas vezes, sombria realidade brasileira com humor é um importante característico de nossa crônica. Humor, talento, grandeza humana: Ronaldo Werneck é tudo isso e muito mais, esteja ele escrevendo sobre política, ou sobre futebol, ou sobre a arte de curtir a vida”.

Pedi à jovem visitante o volume azul e me pus a folhear o segundo, o de capa vermelha. Nas abas, texto de Cunha de Leiradella, que viveu muitos anos no Brasil e voltou a Portugal. Aqui tem muitos amigos, sobretudo em Minas Gerais. E são dele estas palavras: “As crônicas de Ronaldo Werneck foram criadas com aquele ver de dentro que torna a sua leitura um prazer infindo”. No miolo há um escrito de Lina Tâmega Peixoto, que também me manda (de Brasília) cartas e livros com muita frequência. Faz prolongada análise da obra, quase crônica após crônica, para nos prender com esta observação: “E pergunto, em quieta abstração, em que consiste a estilística de Ronaldo Werneck. Talvez, a habilidade de jogar com as palavras, uma provocação lúdica às formas verbais para alcançar uma linguagem delirantemente estética. Ou o emprego de leves palhas de humor e doce ironia”.

Li, para Verônica, alguns trechos das crônicas. Ela pareceu menos triste, menos abalada, menos cansada. Reparo muito na tristeza dos velhos sentados em cadeiras na calçada. Devem se lembrar dos tempos de viço, quando amavam e desamavam quase ao mesmo tempo. Mas também reparo na vaga tristeza dos jovens, quando param por um instante, deitam a cabeça no antebraço e parecem sonhar. Se estiver aborrecida, não falarei mais, nem lerei crônicas. Ela sorriu e eu senti uma tontura tão intensa que me pareceu alçar-me ao topo da bem-aventurança. Ofereci-lhe licor de tangerina, que minha vizinha me presenteou semana passada. Se tiver álcool, prefiro água. Servi-lhe água e doçura. Passei ao volume branco, que é de versos. Inicia-se com estudos de Sérgio de Castro Pinto, Jair Ferreira dos Santos, poema-crítica do português Nuno Rebocho e Olga Savary. Como sabem os que leem muito, a poesia de Ronaldo é de vanguarda, próxima do concretismo, com forte apelo visual. Em alguns momentos, não basta ler em voz alta; é preciso ver o poema. Mas é possível fruir a poesia sem vê-la, como o soneto “Aldebarã”, iniciado assim: “o sangue, o tédio rubro / fluxo, fluxo de dor calva, / vence-me quando descubro / lençóis, desespero, alva”. Gostou? A menina sorriu de novo: Gostei. Esse Ronaldo escreve diferente da maioria dos poetas.

Li mais alguns poemas, cansei a garganta e fui ao banheiro. Ao regressar à sala, encontrei Verônica deslumbrada, rosto enfiado nas páginas de Werneck. Quer levar os poemas ou as crônicas? Pode ser a poesia hoje? Eu quis dizer: Contanto que hoje seja um instante. Não disse nada. Ela se ergueu do sofá para se despedir e me levar Ronaldo e minha inquietação de fauno.

Fortaleza, 25 de agosto de 2011
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