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Hoje resolvi ler contos. Sobre a mesa ainda estava o livro recém chegado do Nilto Maciel. Tirei-o do envelope e li rapidamente a dedicatória. Abri metade de um sorriso e prometi a mim mesmo ler até o final do ano. Acontece que a moça da limpeza, por causa da arrumação, embaralhou os livros que recebo e colocou o Luz vermelha que se azula sobre os outros. Talvez eu tenha deixado para o final do ano, porque sou muito exigente com títulos dos livros e o Luz vermelha que se azula não me motivaram ou não me chamou atenção.
Sorte do Nilto que a moça da limpeza fez uma meia sola hoje e deixou o seu livro por cima dos outros. Mas a coisa do acaso é que às vezes faz a diferença. Comecei a folheá-lo e resolvi encarar o primeiro conto, logo depois de ler a explicação que o autor deu para a escolha, enquadrando dos contos numa tipologia que criou.
“Os outros”, é assim que começa o volume, é aquele conto que tem a responsabilidade de envolver o leitor até o conto seguinte. Sendo o primeiro o mais atrativo, se os seguintes não corresponderem, fica o leitor doido para ver se tem algum que se equipare ao da abertura, para não sair esculhambando o autor, chamando-lhe autor-saci, que tem um conto só.
O bom de ler sem pretensão é que quase sempre nos surpreendemos. E melhor é quando a surpresa é boa. E assim foi. De cara vi logo uma profunda semelhança entre nossas escritas. Ele, o Nilto, gosta de autobiografar o homem maduro, que já passou pelos dramas das perdas e ganhos, com muitos retalhos de decepções e prazeres. Aquele homem que, eufórico na juventude, envelhece disfarçando que não é mais superhomem, mas sem deixar de ser um Indiana Jones contador de façanhas mentirosas. O mesmo homem que guarda as lembranças como álbuns de fotografias, escolhendo e folheando imagens e pessoas sempre que a memória vem ajudar a solidão.
E quase sempre esses homens autobiografados são solitários. São almas irmãs do cowboy interpretado impecavelmente por Clint Eastwood, no velho oeste; de algum policial desgraçado pela vida bandida; de algum barbeiro neurótico, que escuta a vida dos outros e passa a viver em casa, representando para a mulher e os filhos uma vida que não é sua; enfim, sempre é alguém, um outro, que está em nós, nos incomoda, mas só o vemos nos filmes ou sufocados nos livros.
Bastaria o conto “Os outros” para eu abandonar o livro e sair a ermo, olhar o céu e filosofar e escrever devaneios. Só que o ermo está ocupado com a vagabundagem, e o céu, de dia azul que dói, tem o sol rachando a moleira, e à noite, bem, à noite, eu estou enfadado de filosofar e escrever devaneios. Depois, fica difícil me tomar o controle remoto e me tirar da rede macia, o céu pode esperar. Então li o restante. Um, dois, três dias se passaram. O livro é extraordinário e a sensação, quase uma satisfação, de estar dentro dele, melhor ainda.
Com o tempo vamos aprendendo a ser o personagem que criamos. Queremos que nos encontrem em casa, de cueca, jogando bobagens no computador e molhando o pão no café com leite, numa xícara desenhada e de porcelana chinesa antiga, do tempo em que não existia 1,99.
O engraçado de Luz vermelha que se azula é que a gente continua vendo o sense of humour, o sartrismo tupiniquim e as reminiscências tropicais vivas de nossas cidades travestidas na Baturité do autor. Nilto Maciel atingiu neste livro o direito de abusar. Afinal, escrever bem por muito tempo é um abuso, no bom sentido, é claro. Principalmente nesses tempos deseroificados, de uma juventude de pobres diabos zumbificados pelo lixo da indústria cultural que transforma música em convite à boçalidade e à violentação da adolescência, onde meninos só são machos se beberem e as meninas só são atrativas se forem quengas. E ainda tem a alternativa dos meninos do mundo cor de rosa, que a televisão insiste em dizer que é moda. Nada contra o álcool e a quenga, pois quem gosta de literatura, da boa literatura, sabe cantar bêbados e putas com muito mais charme, sem ofender a “moral” e os bons costumes. Quanto aos meninos do mundo cor de rosa, boa sorte neste mundo cor de chumbo.
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