Desde que nos conhecemos, Astrid Cabral e eu mantemos correspondência que só me traz alegria e prazer. Pois quem não gosta de ler carta (ou mensagem) de letras bem arrumadas, frases lapidadas, como se fossem poemas ou crônicas? As dela são assim. A par disso (das cartas), permutamos livros há cerca de vinte anos. O mais recente presente dela é Intramuros (Manaus: Editora Valer, 2011), 2ª edição revista pela autora, Prêmio Nacional de Poesia Helena Kolody, 1997. Trata-se de uma seleção dos livros Intramuros (1998) e Jaula (2006), aos quais juntou a parte intitulada “Extramuros”.
Num breve estudo intitulado “Intramuros – as palavras essenciais”, publicado nas primeiras páginas desta nova edição de Intramuros, Fausto Cunha fez observações expressivas. Entre elas, a de que “o mundo real permeia a obra de Astrid Cabral desde os contos de Alameda (1963)”. E completa nesta: “À visão lírica, à contemplação da natureza, legítimas quanto sejam como fonte de poesia, ela prefere o olhar atento e minucioso para romper a casca da aparência sob a qual tudo se esconde” (…) Isto se vê desde o poema inaugural da coleção (“Portal do dia”), na descrição da mesa, o café da manhã, “xícaras tilintantes”, o bule de louça, laranjas no “agressivo prato/ de onde me encaram furtivas”. Porém, a poetisa (ou a poeta, como grafa o crítico) não se contenta com pintar naturezas mortas (mas há um poema assim intitulado): se insere (como narradora) na cena e também se descreve: “ressaca da insônia”, os “altos tributos de sombra” da noite. Em “Xícara” a mesma visão da mesa posta: “xícara de louça”, “chás cafés chocolates”, “armário mesa pia”, como se a poetisa vasculhasse com o olhar o pequeno mundo doméstico ao seu redor, seu intramuros. Essa construção do lar, desde os pequenos objetos ao próprio espaço (o quintal, a sala, a cozinha, etc), se faz poesia ou é feita em descrições/narrações. No entanto, Astrid percebe em tudo a vida: começo, meio e fim. E escreve o poema “Demolição”.
Outro aspecto da obra de Astrid a chamar a atenção do crítico pernambucano é o dos “recursos sugestivos da linguagem, que vão da musicalidade aos cromatismos, das aliterações às onomatopéias”. E isto é plenamente visível em todo o conjunto. Em “Sanduíche matinal”, lê-se (ou se vê) “entre fatias torradas / jornais com pingos de sangue”: sinistro sanduíche. Em “Epifania”, na observação final, como se o mundo dos jornais se transplantasse para o espaço entre os muros da casa: “Comecei a ver guerras / até no vaivém das formigas / nos azulejos da cozinha”. O poema “Jogo de casa” é quase um desenho verbal: sem pontuação, verbos, adjetivos, preposições; elaborado apenas com substantivos. “Comunhão” é composto de dísticos, numa economia vocabular de quem não quer desperdiçar um só monossílabo. Há também a prosa poética de “Buffet miniatura”, como se fosse um cardápio, as palavras postas não em linha vertical, mas horizontal, separadas por travessões, à maneira de versos tradicionais. Há de se ver o desenho de “Crochet”, sobretudo na segunda estrofe.
A segunda parte do volume se intitula “Jaula”, que pode ser lida como a casa dos bichos ou a própria casa dos homens. A fera, presa na jaula, quer se soltar. Pode ser a doença ou a morte. A fera pode ser o cão bifronte, o mistério: (…) “em mim, das garras presa / o marfim de adagas cravas / para que eu te reconheça”. Seguem-se os poemas da onça sem pelo (“Amoitada em mim / não lhe vejo a cara”), do cisne, do bicho-de-sete-cabeças (“o bicho é meu amigo”), dos cavalos-marinhos, dos bois (sem nome), da baleia albina e até dos bichos menores, as traças. Astrid é de ontem e de hoje. É dos bichos em extinção, dos seres imaginários e dos animais que aparecem em nossas salas, constantemente, na televisão. E a todos Astrid vê: “a baleia albina baila / e assombra / a sala em penumbra”. Vê o os animais marinhos e vê o mar, tão grande e tão miúdo: “Como o mar tão vasto / cabe entre sofás?”
A terceira parte, “Extramuros”, retrata o mundo lá fora, sobretudo as cidades por onde Astrid Cabral passeou, desde o paraíso indígena destruído pelos homens brancos até as ruas da velha Europa. Em “Luziânia revisitada” vamos a Goiás no lombo de uma quase crônica. Breves descrições de paisagens rurais e urbanas, chamadas de postais, nos remetem ao mundo mais longe de nós brasileiros. É tudo muito singelo, sem alardes, sem gritos, embora o grito também seja poesia. Whitman, por exemplo: “Uma hora para a loucura e a alegria! Ó furiosos! Oh, não me confinem! / (O que é isto que me liberta assim nas tempestades? / Que significam meus gritos em meio aos relâmpagos e aos ventos rugidores?)”. Pois Astrid é um pouco de Whitman, um pouco de Pessoa: “Dobrado o Assombro, / O mar é o mesmo: já ninguém o tema!”. Um pouco de cada poeta.
Fortaleza, 2 de setembro de 2011
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