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sábado, 17 de setembro de 2011

Iconoclastia suburbana (Daniel Osiecki)


Há três anos devorei um livro de contos intitulado John Fante trabalha no Esquimó, do então desconhecido (pelo menos pra mim) Mariel Reis. Logo nos primeiros textos já tive a impressão de estar lendo um discípulo do mestre (e meu conterrâneo) Dalton Trevisan.

Quando Mariel me enviou Vida Cachorra confesso que fiquei apreensivo. Pensei: e se o excelente autor ficou só no primeiro livro? Ledo engano. Já no início me deparo com absolvição, conto de tirar o fôlego que nos introduz a um universo nada novo na ficção de Mariel, ou seja, o universo sombrio de um presidiário que aguarda seu julgamento por assumir um crime cometido pela esposa. Mariel narra o que lemos nos jornais todos os dias, porém há aqui o toque de Midas do ficcionista.

Na sequência vem "Amor Filial", outra narrativa repleta pelas mazelas do cotidiano suburbano. Há uma violência despida de pudores que perpassa todo livro, assim como um desencontro frenético entre os personagens que geralmente são párias, marginais ou desvalidos de uma sociedade brutal, hipócrita e alienável que os condena a viver no limite entre a lucidez e a insanidade.

Os outros contos que compõem Vida Cachorra parecem ser interligados por um único fio condutor: a brutalidade. Seja de forma violenta ou não. Assim como o personagem de "Espírito Natalino", que trabalha como papai Noel e ao mesmo tempo pratica furtos no subúrbio carioca. É um personagem despido de certos pudores, mas ao mesmo tempo é extremamente ético no que faz.

Eu poderia citar conto por conto, mas separar essas narrativas é como desmembrar o livro como um todo. Uma das belezas de Vida Cachorra é a interação temática entre os contos, costurados com destreza por Mariel, o que é raro na literatura brasileira contemporânea.

O autor de John Fante trabalha no Esquimó, além de aprimorar sua técnica narrativa, ousou alguns elementos experimentais, como a ausência de maiúsculas, uma pontuação peculiar e elementos poético visuais. O acréscimo de parte de um diálogo entre personagens do conto Indigestão após a narrativa acabar, com fluxo de consciência, é um exemplo disso.

Mariel Reis é um iconoclasta, um subversivo, um contraventor da sintaxe convencional. Mariel demonstra uma intimidade com a palavra que dificilmente vejo em autores mais novos. Vida Cachorra retrata o absurdo do cotidiano de forma violenta, sem heróis nem grandeza. Nos contos nos deparamos com o pragmatismo da sociedade moderna, com personagens que não apresentam estrutura social e moral para transpor seus obstáculos.

É uma leitura ágil, sem melindres, direta, "Ao modo de Dalton Trevisan", como Mariel intitula um dos contos. É impossível permanecer indiferente a Vida Cachorra tanto pela qualidade narrativa quanto pelo incômodo causado por seu realismo cru. Mariel Reis mais uma vez surpreende, choca e deleita, como todo grande escritor.
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Daniel Osiecki - Crítico Literário curitibano
Escreve no blogue : Távola Redonda
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